Homem de Verdade (2023)

A ética do exibicionismo

título original (ano)
Homem de Verdade (2023)
país
Brasil
gênero
Documentário, Drama
duração
18 minutos
direção
Rafael Rudolf
elenco
Rafael Rudolf, Falcon, Gustavo Vinagre, Raphael Jacques, Reinaldo Lopes
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

Rafael Rudolf é um artista exibicionista. Esta poderia ser a conclusão obtida após o final do filme, no entanto, constitui seu ponto de partida. O cineasta, roteirista e personagem principal possui plena consciência dos prazeres de ser visto, e de construir registros pessoais. Gosta de sexo, gosta do próprio corpo, e possui atração por homens musculosos, querendo-os para si, mas também almejando ser um deles. O autor parte de uma autoconsciência rara a respeito de seus desejos e sua relação com as imagens.

O interesse do cineasta reside em uma pergunta mais complexa: de onde vem o prazer pela exposição de si? A partir de quando o comportamento surgiu no rapaz, e de que maneira se desenvolveu? Ele propõe, assim, uma genealogia do exibicionismo, buscando materiais de arquivo capazes de representar esta relação particular com o sexo. Em se tratando de um homem com prazer de se gravar, felizmente havia diversas fitas disponíveis, focadas na infância e na adolescência.

O autor toma algumas precauções fundamentais para respeitar o espectador e a memória de sua juventude. Em primeiro lugar, oculta a nudez explícita antes da maioridade. Rafael adolescente conversava com uma câmera-diário acerca da vontade de ser visto e penetrado; expunha o pênis, o peito, a bunda. No entanto, o filme preserva a anatomia do garoto, para revelá-la somente em gravações na fase adulta. 

Homem de Verdade escancara o teor de dominação que existe entre o filmante e o filmado, com o diferencial de que, neste caso, o autor ocupa ambas as posições.

Não há ambição de chocar pelo simples prazer de fazê-lo. A montagem de Gabriel Pessoto compreende o aspecto delicado destes registros, vistos com carinho e ternura, ao invés de julgamentos morais. Trata-se menos de momentos de escândalo do que instantes de autoacolhimento. Rafael observa suas pulsões, ainda em formação, compreendendo que nunca estiveram erradas, deslocadas, nem precisariam ser corrigidas de qualquer maneira. 

O personagem visava atingir uma forma física e um relacionamento específicos com o erotismo. Realizou seu sonho. Esta seria uma história de sucesso, de conquista dos objetivos traçados. Quantas pessoas podem assistir às suas gravações caseiras da adolescência e dizer que chegaram exatamente no local onde planejavam? Quantas mantêm os planos daquela época? O cineasta comprova, através deste mecanismo, surpreendente coerência consigo próprio. 

Ele jamais passou (pelo menos, até onde o projeto revela) por um processo de vergonha ou reavaliação de sua libido. O filme apela, com determinação, ao direito ao sexo e à autoimagem, concebidos aqui muito antes dos fenômenos de autopornificação, de smartphones e das redes sociais. Rafael não aderiu à alguma tendência expressa por colegas: seu desejo precedia as manifestações contemporâneas de autoexposição.

Em segundo lugar, o autor encontra no retorno ao passado familiar as raízes de seu comportamento. Em vertente psicanalítica — ou excessivamente determinista, diriam alguns —, declara que a vontade de se mostrar sempre existiu, e que teria sido encorajada, ou pelo menos tolerada, por pai e mãe. Esta última, na condição de cineasta, pedia ao menino pequeno para mostrar a bunda. Depois, afirmava que o garoto sempre gostou de aparecer em frente às câmeras. A presença do dispositivo de gravação soa bastante natural entre os personagens.

Alguns instantes podem soar perturbadores, porém nenhum deles provém da nudez ou do sexo. O pequeno Rafael se deita na cama com o avô, que o convida para “mamar”. Olhando em retrospecto, pelo ponto de vista de um adulto que se revela praticando sexo oral em outros homens, o teor incomoda. A cena termina com um beijo (novamente, encorajado pela mãe) entre os dois homens, os lábios quase se tocando, seguido da escolha de limpar a bochecha por parte do menino. O que o cineasta enxerga neste trecho? Carinho, erotismo, ou a impossibilidade de dissociar um do outro?

Em terceiro lugar, Homem de Verdade escancara o teor de dominação que existe entre o filmante e o filmado, com o diferencial de que, neste caso, o autor ocupa ambas as posições. Filmar implica em dominar a cena, controlar o ângulo, a duração, o ator de acordo com suas vontades. Equipara-se ao erotismo de possuir e controlar o corpo alheio. Em contrapartida, ser filmado implica na confiança de se colocar à mercê do ponto de vista de outra pessoa, que pode representar aquela subjetividade da maneira que lhe convier. Através do gesto do cinema, Rafael domina e é dominado; penetra e é penetrado. 

Até por isso, os fragmentos de sexo explícito soam pouco chocantes, visto que foram cuidadosamente construídos até sua revelação. A relação entre a nudez e o ego se torna tema do projeto, ao invés de uma característica ocorrida por deslize ou desatenção. Mais do que um filme exibicionista, este seria um filme sobre o exibicionismo. A autoconsciência e o caráter de pesquisa em arquivos pessoais imprimem o distanciamento necessário para que o resultado se distingua da perspectiva geralmente negativa associada ao pornô. 

Assim, não assistimos apenas a um homem fazendo sexo, mas ao garoto de pulsões muito claras, manifestadas desde a infância, executando os atos que sempre desejou executar. A complexidade psicológica e posicionamento político afastam o protagonista dos corpos desencarnados do pornô gay comum. Novamente, este seria um curta-metragem sobre corpos romantizados, ao invés de uma iniciativa que romantiza corpos. 

Como convém a um exibicionista, Rudolf garante que as cenas de sexo sejam voltadas ao seu corpo, ocultando, ou revelando muito pouco, dos rostos dos parceiros. Costuma-se taxar de egocêntrico o filme no qual o autor não percebe que, ao invés de abordar um tema preciso, discorre somente a respeito de si, valorizando suas qualidades ou conquistas. Entretanto, eles o são a revelia: ególatras jamais se consideram ególatras. A inteligência de Homem de Verdade reside na autoanálise de grande inteligência: o movimento autocentrado constitui o cerne desta iniciativa, seu motivo de existir. Cada gesto do retorno ao eu soa devidamente calculado.

A experiência se encerra de maneira um tanto abrupta, logo após um encontro frustrado do adolescente. Em outras palavras, termina diante da ausência de imagens. Para um artista que gosta de se mostrar e se gravar, a falta de registros proporciona um desfecho melancólico, embora Rudolf tenha se convertido no go go boy de sua própria ficção, dançando no palco improvisado. De certo modo, o filme inteiro constitui uma representação desta aspiração a go go boy, por permitir ao cineasta dançar em frente ao público, exibir-se como planejava.  

No final, este filme a respeito do sexo e do erotismo revela-se a antítese da pornografia: enquanto esta última visa reforçar a aparência de perfeição, o curta se preocupa em desmontar o voyeurismo, abordando-o por um viés racional (o exame da formação familiar) ao invés de puramente sensorial. Nossos pornôs comuns também perderiam seu valor de excitação caso conhecêssemos a fundo estes personagens, acessando sua infância, adolescência, traumas, desejos, sonhos. Para o bem ou para o mal, a fantasia funciona como antítese (e antídoto) do real. 

Homem de Verdade (2023)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.