The Adamant Girl (2024)

Rituais para uma garota impura

título original (ano)
Kottukkaali (2024)
país
Índia
gênero
Comédia, Drama
duração
100 minutos
direção
Vinothraj PS
elenco
Soori Muthuchamy, Anna Ben
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

“Mas o doutor nem examina / Chamando o pai de lado, lhe diz logo em surdina / Que o mal é da idade, e que pra tal menina / Não há um só remédio em toda a medicina / Ela só quer, só pensa em namorar…”. 

Na cultura indiana, existe, sim, uma maneira de lidar com uma garota apaixonada pelo rapaz a quem não está prometida. O procedimento envolve o sacrifício de um galo. Exige a presença de cinzas sagradas, de um limão esfregado com força contra o coro cabeludo, de côco espalhado pelos ares, de incensos poderosos. Inclui cachimbos mágicos, pinturas na testa, tubos mágicos e objetos espremidos na barriga, além da presença de todos os familiares na condição de testemunhas do “exorcismo”.

Preocupados em frear o desejo de Meena (Anna Ben) em se unir a um garoto de casta inferior, que conheceu na faculdade (está vendo o perigo de educar as mulheres?), os parentes decidem que ela precisa passar um ritual capaz de romper esta “magia negra”. Afinal, na concepção deles, a garota deve estar possuída para não querer se casar com Pandi (Soori Muthuchamy). O longa-metragem inteiro ocorre durante a viagem até o local distante, onde a jovem encontrará um vidente capaz de executar o exorcismo. 

Nas palavras deste, “mesmo que você não a queira mais, ela será escrava da sua família para sempre”. Logo, dois núcleos formados por pais, tios, irmãos e primos se deslocam através de regiões rurais no interior da Índia, munidos dos produtos necessários ao descarrego. Estão desesperados, tensos, compreendendo a gravidade da situação. Caso a menina não perca o afeto por outra pessoa, haverá mortes de honra na família — talvez de Meena, ou ainda do pai e da mãe dela.

A mistura entre o público e o privado é exemplificada pelo cortejo familiar destinado a resolver, de maneira coletiva e violenta, uma história de amor.

Por este motivo, o diretor Vinothraj PS impregna sua longa jornada com um senso de absurdo, capaz de inspirar tanto humor quanto terror, em cenas alternadas. Estamos distantes do realismo observador de vertente antropológica, por exemplo. É evidente o posicionamento da direção a favor da menina calada, que não pronuncia uma palavra sequer ao longo do filme (embora murmure uma canção, na cena mais forte da narrativa). São os outros que falam, decidem, dão ordens. Mesmo assim, as atenções seguem junto a ela.

The Adamant Girl surpreende pela dedicação precisa aos procedimentos. O autor estima ser fundamental que o espectador acompanhe o processo de perto. Quando falta gasolina às motocicletas, vemos o produto ser comprado, acompanhado em plano-sequência (em plano próximo na mão que segura a garrafa), e depois, a inserção do líquido no tanque de combustível, até a conclusão. Quando a mãe da protagonista performa seu próprio ritual, pela manhã, a câmera a segue, novamente sem cortes, em tempo real, até chegar numa praça, acender o fogo, ajoelhar-se, rezar, banhar-se.

Este olhar acentua a sensação de estranhamento, como se estivéssemos assistindo a algo que não deveria existir (ou tão íntimo, que não deveríamos ver). A mistura entre o público e o privado é exemplificada pelo cortejo familiar destinado a resolver, de maneira coletiva e violenta, uma história de amor. Ninguém jamais pergunta a Meena o que pensa, se concorda, como se sente. Ela se torna a coadjuvante do próprio ritual — chegando ao final, os parentes revelam que as etapas são executadas para Pandi, o futuro marido, de modo que este seja capaz de aceitá-la de volta.

Diversas vezes, a jovem será comparada ao galo, transportado para o sacrifício final. Preso a uma pedra, o bicho sofre com insolação, tenta fugir. Heroína e animal se encaram, como se compreendessem o destino um do outro. Adiante, revela-se a presença de um touro raivoso impedindo a travessia — até descobrirmos que ele pertence, na verdade, a uma garotinha solitária —, ou de Meena encarando o sobrinho mais novo, chorando após testemunhar a violência extrema. Muito se transmite por meio dos silêncios. Tanto os que falam quanto aqueles que se calam compreendem exatamente os elementos em jogo.

Vinothraj PS sugere que o caso da garota está longe de constituir uma exceção. Na travessia, compara o caso dela com o de outras mulheres, seja pelos diálogos, seja visualmente. Por exemplo, as famílias se deparam com a “cerimônia da puberdade” de uma adolescente. Em outras palavras, o controle feminino acompanha as indianas ao longo de toda a sua formação e existência social. Chegando finalmente ao xamã, presenciamos o procedimento aplicado a outra garota, de histórico semelhante. Assim, Meera evita o posto de mártir de uma família particularmente raivosa. Ela apenas representa o comportamento médio quando se partilha daquelas crenças.

No entanto, até chegar ao destino ingrato, o roteiro incorpora um sem-número de obstáculos, tão cômicos quanto fantásticos, destinados a provar a obstinação dela em resistir, e dos parentes em seguir adiante. Alguns derivam dos road movies convencionais: o motor para de funcionar, alguém precisa descer para se aliviar, etc. Outros pertencem à esfera simbólica: o touro, o episódio da música romântica refletindo o machismo estrutural. Assim, o cineasta pode incorporar, durante poucas horas na vida de uma dúzia de personagens, uma ampla gama de conflitos de classe, gênero e raça.

The Adamant Girl surpreende por um belo trabalho de câmera e direção, muito mais preciso do que o cineasta havia demonstrado em Pebbles (2021), seu longa-metragem anterior. Aqui, ele utiliza o formato do scope para traçar retratos, deixando que o amplo espaço do enquadramento ao lado dos rostos acentue ou o silêncio dos personagens, ou a presença inevitável dos familiares no encalço. Há sempre diversas pessoas em cada enquadramento — fator registrado de maneira um tanto humorística. Cenas das mãos de Meena se contorcendo no banco de trás, ou da “ressurreição” do galo indisposto demonstram o talento de um diretor que sabe muito bem para onde olhar, de qual maneira, e por quanto tempo.

O desfecho pode surpreender ao adotar, pela primeira vez, o ponto de vista de Pandi. A câmera assume literalmente um plano subjetivo, como não havia ocorrido antes. Passado um pequeno trauma, decide colocar o espectador na perspectiva do homem que testemunha o abuso físico e emocional da mulher amada. A opção pode ser debatida: como uma obra voltada à opressão feminina pode dar a palavra, e o ponto de vista final, ao marido agressivo? 

No entanto, é possível que o cineasta esteja colocando o espectador junto a este homem, pressupondo que seu espectador, sobretudo a parcela masculina, precisem enxergar Meena por um olhar de tolerância ou, pelo menos, de distanciamento quanto às suas convicções. O diretor espera que a mudança venha dele, o sujeito machista, ao invés dela. Neste aspecto, ele tem razão: os abusadores deveriam ser responsabilizados pelas mudanças, em detrimento das companheiras. Mesmo assim, a crença na transformação pode ser considerada ingênua ou utópica. 

Ora, ela revela uma perspectiva otimista, o plantio de uma pequena semente capaz de alterar, futuramente, perspectivas abusivas em relação às mulheres — logo no olhar dos homens, posição ocupada pelo cineasta. Depois de noventa minutos de uma produção bastante feminina, o autor assume o lugar de fala que lhe cabe, e se dirige em especial à parcela castradora de homens sentados na sala de cinema. Se a mensagem surtirá algum efeito (e se tal ensinamento humanista seria de responsabilidade do cinema), resta a nossa discussão.

The Adamant Girl (2024)
8
Nota 8/10

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