A História do Olhar (2021)

Introdução à análise da imagem

título original (ano)
The Story of Looking (2021)
país
Reino Unido
Gênero
Documentário
duração
90 minutos
Direção
Mark Cousins
Com
Mark Cousins
visto em
Festival É Tudo Verdade 2022

“É tão fácil ver hoje. Mas o que fazemos com o que vemos?”. Um dos grandes méritos de A História do Olhar (2021) se encontra na capacidade de fazer boas perguntas, sem a pressão de trazer respostas esclarecedoras. O diretor e escritor Mark Cousins parte do princípio que a atual geração tem acesso a Internet, telefones móveis, museus digitalizados, além de novos meios de transporte permitindo viajar e conhecer o mundo. Descobrimos as paisagens, as guerras e a nós mesmos. Então, o que fazer com tamanho acúmulo de imagens?

O questionamento não surge aleatoriamente. Em primeiro lugar, o autor se refere ao período da pandemia de Covid-19, quando as pessoas se isolaram em suas casas e se obrigaram a enxergar o mundo de maneira diferente ou, pelo menos, a limitar o escopo do que podiam ver devido à clausura. Chegando à possibilidade de reabertura, como lidar com o reencontro ao outro? De que maneira de enxergar uma sociedade recém-fraturada? Qual seria o novo significado destes espaços abertos, e da convivência em sociedade?

Em segundo lugar, Cousins está prestes a operar uma catarata, e sofre com o medo de sequelas na cirurgia destinada a corrigir a visão borrada do olho esquerdo. O cineasta compartilha os receios íntimos diretamente de sua cama, sob os cobertores. Ele filma a si próprio, conversa diretamente com o telefone celular sob uma luz improvisada. Em certos casos, levanta-se e vai buscar em outro cômodo algum objeto que pretende exibir ao espectador. Sentimo-nos numa chamada Skype com o autor, ao longo de uma conversa descontraída.

O documentário se articula entre o público e privado, o universal e o íntimo. Ora este narrador menciona a vista da janela de sua casa; ora discute o imaginário coletivo das guerras e as referências à visão em filmes indianos e britânicos. Entre a função de protagonista, ocupando a integralidade do plano em close-up, e aquela de narrador em off, ele cria uma estrutura capaz de fugir tanto ao aspecto pomposo das apresentações fatuais quanto ao egocentrismo das histórias dizem respeito apenas à vivência de seus criadores. 

A História do Olhar se torna um filme-processo, desenvolvendo-se em parte de maneira didática (o cineasta separa sua exposição em blocos temáticos, antecipando-os ao espectador), parte de maneira improvisada, com pensamentos aleatórios incorporados ao fluxo de ideias. Materiais de arquivo combinam-se com registros pessoais de viagens, jamais concebidos para integrarem uma obra de arte, e com filmagens elaboradas especificamente para este projeto em particular.

O resultado se assemelha a uma masterclass sobre análise da imagem e ética da representação — para o bem ou para o mal.

Enquanto isso, lança indagações estéticas: é melhor ver o mundo real, ou apenas supô-lo de acordo com nossas idealizações e memórias afetivas — em outras palavras, abraçar a imagem do real, ou o imaginário? Como reagir aos testemunhos traumáticos? O que nos garante que o olho humano reflita o real e, portanto, uma verdade? Que parte de nossas experiências de vida não implica numa ilusão, ou pelo menos uma deturpação do mundo ao redor? Chegando à velhice, o acúmulo de imagens vistas, relacionadas às passagens vividas, deveria provocar reconforto, ou implicar numa responsabilidade e num peso duros de suportar?

O resultado se assemelha a uma masterclass sobre análise da imagem e ética da representação. De maneira acessível, sem jargões nem citações teóricas desnecessárias, Cousins passa pela Antiguidade, o Renascimento e a Modernidade, indagando a natureza das selfies, a cultura da (des)informação, e expondo sua própria nudez para efeitos pedagógicos (“Nunca tive problemas em mostrar meu corpo. Isso faz de mim um exibicionista?”). A imagem de si e a imagem do próximo passa por um panorama vasto ao longo de sucintos 90 minutos de duração.

Entretanto, há um porém — um grande porém. Este mesmo aspecto de masterclass provoca certo incômodo. O longa-metragem depende excessivamente da narração de seu diretor para evoluir, adquirir significado e articular imagens, posto que os trechos selecionados jamais expressariam, com seus sons diretos, as indagações desejadas pelo autor. Apesar de despojado e informal (que diretores filmam o próprio pênis enquanto deitados na cama?), o ponto de vista se mostra controlador, deixando pouco espaço a interpretações divergentes. Cada fragmento chega aos nossos olhos pressignificado, explicado por um professor simpático e entusiasta. 

Caberia ao cinema a função de explicar o mundo, as artes, a natureza das imagens? Não seria possível sugerir, em certa medida, que o teor de palestra diminui o potencial estético e estrutural da linguagem cinematográfica? Quanto mais o projeto instrui seu espectador, menos o convida a vivenciar sensações sozinho, de maneira espontânea, a partir de uma experiência plástica. Aqui, a imagem se rende ao som: cada material se condiciona às necessidades do narrador, enquanto exemplos de uma tese inicial que Cousins está disposto a comprovar.

Este aspecto não retira os méritos do generoso apanhado de filosofia estética e, em comparação com a maioria dos filmes de caráter didático, A História do Olhar consegue inserir uma quantidade expressiva de leveza, graças aos vídeos pessoais do diretor. Ele se desnuda literal e simbolicamente, apresentando inclusive a filmagem ao vivo da cirurgia que poderia dar errado. Tornamo-nos testemunhas e cúmplices de um instante traumático em sua vida, ao invés de analisarmos os fatos a posteriori. Para um professor, Cousins possui surpreendente capacidade de deixar os alunos à vontade diante do conteúdo desejado.

A História do Olhar (2021)
8
Nota 8/10

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