Wellington (João Pedro Mariano) e Ronaldo (Ricardo Teodoro) encontram-se por acaso. O garoto acaba de completar dezoito anos, o que motiva sua saída da Febem. Sem família, amigos nem dinheiro, perambula pelas ruas. Já Ronaldo trabalha como garoto de programa em cinemas pornôs do centro de São Paulo. Os dois se cruzam nos corredores escuros, mas, por falta de recursos do menino, não consomem o ato sexual. Mesmo assim, num misto de solidão e conveniência, passam a noite juntos.
Rebatizado Baby, o jovem pode servir de garoto de programa a Ronaldo, que às vezes faz planos a três, ou com clientes voyeurs. Para este último, a pensão minúscula do homem mais velho representa a oportunidade de um lar, ainda que temporário. O roteiro do diretor Marcelo Caetano, em parceria com Gabriel Domingues, foge à armadilha da salvação pelo amor romântico. Os problemas não desaparecem quando ambos se unem, pelo contrário. Agora, além de cuidarem de si próprios numa metrópole inóspita, precisam cuidar um do outro.
Um dos aspectos mais interessantes do drama brasileiro reside no status complexo do elo entre os dois homens. São amigos, amantes, colegas de quarto, mas também chefe e funcionário; cafetão e garoto de programa; pai simbólico e filho rebelde. Alternam-se em domínio de poder, e no controle destes laços precários: ora Ronaldo se impõe, pela experiência e por ter melhores condições financeiras, ora o jovem lembra que, como não tem nada a perder, pode abrir mão facilmente da pequena estrutura fornecida pelo companheiro. Eles se aproximam e se afastam, se amam e se detestam, se desejam e se repudiam.
Os dois homens são amantes, colegas de quarto, mas também chefe e funcionário; cafetão e garoto de programa; pai simbólico e filho rebelde. Alternam-se em domínio de poder, e no controle destes laços precários.
A direção de atores impressiona. Uma das principais qualidades percebidas em Corpo Elétrico (2017) reaparece aqui: o senso de coletividade, a espontaneidade dos corpos e dos diálogos. Caetano transmite a ilusória impressão de facilidade ao estabelecer uma dinâmica entre diversas pessoas, provocando-se e rindo juntas, evitando o caos na captação de som e imagem. A coreografia do roubo entre amigos gays e trans no cinemão, e a união na casa da ex-companheira de Ronaldo transparecem o conforto palpável dos atores com o texto e as ações.
Logo, o cineasta sabe extrair o melhor de seu grande elenco, que inclui participações excelentes de Ana Flávia Cavalcanti, Bruna Linzmeyer e Luiz Bertazzo. O longa-metragem cresce sempre que promove interações semelhantes, seja para desenhar o imaginário de uma nova família brasileira (com duas mães, dois pais e uma criança), seja para opor diferentes gerações de homens gays. “Você teve muito mais sorte. É muito mais fácil [ser gay] pra vocês”, afirma um homem maduro, dentro de seu apartamento luxuoso. Baby recebe tal afirmação com surpresa e escárnio. Em que sentido, a vida do garoto afastado da família teria sido fácil?
Além disso, o drama possui momentos preciosíssimos, representativos de um diretor com amplo domínio da mise en scène. Ironicamente, a melhor cena de Baby não provém dos encontros e desencontros entre os dois homens, mas da única aproximação entre o jovem e sua mãe. Com poucas palavras, a câmera apenas se concentra durante bastante tempo no rosto da mulher. Por suas vestimentas, pelo olhar meio envergonhado, meio amedrontado, compreendemos sua origem social, o afeto reprimido pelo filho, as desculpas que não consegue proferir. Ali, graças à duração do plano, ao silêncio à disposição dos corpos, Caetano oferece um magnífico instante cinematográfico.
Atenção: spoilers a seguir.
Quando foge a tal despojamento, entretanto, o drama revela algumas fraquezas. As sequências de abertura e encerramento, em particular, incomodam um pouco. A primeira aposta em um centro de detenção intensamente coreografado e decupado, misto de quartel e escola para alunos muito bem comportados, dotados de talento musical. Já a conclusão recorre a uma conciliação fácil, como se fosse necessário deixar pontas abertas para um reencontro de felicidades e união entre os dois, apesar de suas diferenças tidas, até então, como irreparáveis.
Se o drama conseguia fugir às saídas fáceis de roteiro, ele incorre nesta concessão pontual ao gosto médio, em virtude da solução mágica de abraços, desculpas e afetos preservados apesar do tempo. O otimismo soa pouco verossímil, extraído a fórceps para não encerrar a aventura de Baby numa chave pessimista. O romance não constituía, até então, um objetivo, apenas o meio para expor duas personalidades complexas. Após o encontro do acaso, o amor pode ser lido enquanto objetivo da obra, como se as idas e voltas tivessem sido criadas para potencializar a força do reencontro — sugerindo que era este era o destino de ambos, que mais cedo ou mais tarde, eles ficariam juntos, etc.
Ora, as pequenas ressalvas não apagam os grandes méritos de um drama bem desenvolvido em termos de roteiro e direção. Os saltos temporais são discretos e eficientes, a relação com as drogas evita o moralismo fácil, e o centro de São Paulo ganha um retrato empolgante, oscilando entre os perigos e as possibilidades de uma cidade onde tudo acontece. O diretor se atém aos trabalhadores queer e precarizados, enxergando o cruzamento entre dissidências sexuais e marginalidades do capitalismo pela ótica da resistência.
A força de Corpo Elétrico e Baby consiste em perceber que os indivíduos não podem ser compreendidos separadamente do meio onde se encontram. Mesmo assim, tampouco constituem frutos diretos destas situações (em chave determinista) nem guerreiros responsáveis por corrigir as falhas do sistema, numa luta solitária contra todos (em chave heroica e utópica). Baby, Ronaldo, Elias e o outro Wellington viram-se como podem, divertem-se quando é possível, amam o quanto lhes cabe, da maneira que conseguem. A vida ocorre nas frestas de um sistema opressor, dentro da cidade que constitui uma prisão e uma festa.