Neste documentário, Petra Costa se confronta a um tema tão urgente quanto complexo: a ascensão neopentecostal na política brasileira. Como chegamos a mais de 30% de evangélicos na sociedade brasileira, e de que modo seus representantes conquistaram os principais cargos da Câmera e Senado — além de uma vaga inédita no STF? É preciso aplaudir a coragem da cineasta, que se confronta a temas espinhosos, sem freios nem meios-termos. Este é, de fato, um questionamento carente de discussão mais ampla, inclusive pela produção artística.
A diretora impressiona pelo acesso privilegiado aos principais nomes do poder político. Ela toma café da manhã com Lula e Janja, visita Bolsonaro no Palácio Presidencial (quando ainda estava eleito), e visita a casa de Silas Malafaia, com a esposa e os netos. Em especial, transforma este último no protagonista, espécie de fio condutor para pensar a religiosidade evangélica enquanto ferramenta de ambição de poder. Por isso, viaja em jatinhos com o pastor e conversa com ele em seu escritório.
Ora, por que o sujeito ultra conservador teria aceitado a presença da artista progressista em sua casa? Talvez por um misto de autoconfiança com a garantia de candura nestes encontros: Costa jamais confronta seu interlocutor. Diante de comentários transfóbicos, simplesmente escuta a defesa desta versão torpe e equivocada da “liberdade de expressão”. O homem de amplo domínio da retórica não aparenta ter se sentido ameaçado pela cineasta que simplesmente o deixa dizer aquilo que quiser, da maneira que lhe convém.
O documentário parte de um incômodo princípio de advogado do diabo: coloca-se ao lado daqueles dos quais discorda, deixando que exponham seu ponto de vista, apenas para servirem de exemplo a uma contra-argumentação mais ampla.
Certo, os enquadramentos e a montagem recortam a parte do real que interessa à autora, conferindo-lhe poder sobre o discurso alheio. Mesmo assim, Malafaia passa ileso em um filme que não defende sua postura ideológica, porém demonstra surpreendente respeito por ele. Algo semelhante ocorre no curto fragmento com Bolsonaro. Quando o ex-presidente afirma que o ministro do STF apontado por ele precisaria ser, em primeiro lugar, “terrivelmente evangélico”, e em segundo lugar, dotado de competências jurídicas, o dispositivo o escuta placidamente. Foge à armadilha e antagonizar com o político, esperando que a inserção de suas falas em um contexto maior se responsabilize pela crítica macro.
Ora, durante o encontro com Lula, as coisas se tornam bem diferentes. As raras conversas com o presidente (em comparação com o pastor) partem para o ataque, colocando o líder do PT contra as cordas: “Por que Bolsonaro te passou no segmento evangélico?”, “Você vai à Igreja pedir votos? Nunca foi?”. Ainda que ninguém duvide do posicionamento progressista de Costa, sua visível diferença de tratamento entre a direita e a esquerda remete à abordagem de tantos veículos hegemônicos e conservadores da imprensa brasileira.
Isso ocorre porque o documentário parte de um incômodo princípio de advogado do diabo: coloca-se ao lado daqueles dos quais discorda, deixando que exponham seu ponto de vista, apenas para servirem de exemplo a uma contra-argumentação mais ampla. Apocalipse nos Trópicos corre o risco de incomodar tanto parte da esquerda (para quem a decisão de oferecer tanto tempo e oportunidade de fala a uma pessoa extremamente midiatizada, como Malafaia, constitui uma estratégia condescendente) quanto da direita. Esta última teria disposição mínima a assistir um documentário político brasileiro, e caso o faça, encontraria um ponto de vista ambíguo a respeito de Malafaia e demais pastores.
Além disso, enquanto investigação de um tema sensível, o projeto sofre com problemas metodológicos fundamentais. Caso constituísse uma pesquisa acadêmica — com a qual guarda diversas afinidades, dos objetivos à estrutura —, seria questionado por bancas e orientadores, a respeito do recorte de estudo. A amplitude do discurso faz com que o filme soe extenso (são quase duas horas de duração), porém limitado demais; exaustivo, ainda que superficial. O filme mal cita a importância das redes sociais, por exemplo. Não discute o papel dos grandes jornais de direita, do Centrão, nem inclui o fenômeno dos cultos com fiéis fazendo arminha na mão. Ainda evita nomes importantes como Nikolas Ferreira e Marco Feliciano.
Ora, seria impossível incluir tudo, alguém poderia argumentar — com razão. No entanto, a ausência de segmentação do olhar permite tais cobranças. Se a artista se dispõe a um mergulho aprofundado, precisa compreender a necessidade de abraçar inúmeros aspectos da complexa política brasileira. Teria maior sucesso caso confrontasse o mesmo tema por uma perspectiva pontual, seja de uma pessoa única (Malafaia, por exemplo), de um ano em particular, quando as coisas se transformaram, ou de um episódio específico que pudesse esmiuçar (o 8 de janeiro, em especial).
A narrativa se encerra abruptamente, sem uma finalização de fato, em virtude desta indefinição de corpus e de material. Parece ter dito muitas coisas, porém, ainda insuficientes para a compreensão procurada. Além disso, outra falha conceitual diz respeito ao interlocutor presumido: afinal, a diretora se comunica com conterrâneos ou com estrangeiros, que desconheçam os meandros de nossas eleições e nossa constituição? Inicialmente, pressupõe que seu público conheça o básico dos acontecimentos, dispensando a necessidade de explicar as principais peças do tabuleiro.
Em contrapartida, adiante, apresenta Sérgio Moro e Deltan Dallagnol ao espectador como se nunca os tivéssemos visto antes. Informa que o primeiro é juiz federal, e o segundo, promotor. Avisa que o primeiro se tornou ministro de Bolsonaro. Por que pressupor nosso desconhecimento de informações tão básicas? Afinal, a obra visa analisar acontecimentos a partir de um mínimo conhecimento prévio, ou informar seu interlocutor a respeito de dados introdutórios, que pressupõe desconhecer? Dialoga com a turma do primeiro ano da faculdade, ou do último ano de graduação?
A seu favor, a obra transparece o refinamento de captação, o trabalho muito organizado de sons, além de uma clareza na montagem, graças ao trabalho conjunto de Victor Miaciro, Jordana Berg, Tina Baz, David Barker, Nels Bangerter e Eduardo Gripa. A divisão em capítulos ajuda a estruturar o pensamento, enquanto a opção pelo estudo de pinturas representando o Livro do Apocalipse contribui para certa poesia da violência, ou uma forma de lirismo do caos. Ironicamente, o longa-metragem respira cada vez que escapa ao naturalismo imediato, tão recente em nossas memórias, em prol de uma iconografia menos conotada, histórica e ideologicamente.
Em contrapartida, Apocalipse nos Trópicos sucumbe ao peso de suas ambições, e à ambiguidade deontológica deste discurso que mergulha na direita para melhor expô-la à esquerda. Ao final, não parece nem apresentar informações particularmente reveladoras acerca do pensamento religioso e sua sede de poder, nem oferecer ao público progressista ferramentas para lidar com tal fenômeno, respondendo à altura. Apesar de mirar na análise política, a obra ainda se limita às constatações iniciais — fundamentais, sem dúvida —, sem chegar de fato ao estágio de hipóteses e conclusões.