Filmes como O Mundo dos Mortos nos lembram da necessidade de adequar os critérios de análise à linguagem proposta. O crítico esperando um projeto naturalista detestaria a obra do diretor Pedro Tavares. Seria fácil apontar o dedo à mise en scène estática demais, à rigidez excessiva dos enquadramentos e dos corpos, à aridez das falas, ao caráter esvaziado das atuações. O resultado falharia em qualquer expectativa relacionada a uma obra clássica-narrativa, do tipo que se move por conflitos, desenvolvimento de personagens e relações de causa e consequência.
Felizmente, a obra não busca se inserir em nenhum destes pressupostos. Estamos muito distantes de um projeto que falhou em sua tentativa de “contar uma história”. Aqui, a forma equivale ao conteúdo, e todas as escolhas são voluntárias, ostensivas, radicais. O cineasta possui convicção no funcionamento de sua estética, mantida cegamente até o final. Ele dispensa qualquer concessão ao público médio, qualquer facilitador aos sentidos. Trata-se de uma obra hermética, que exige atenção e esforço do espectador — uma iniciativa conceitual, intelectual, praticamente o avesso do cinema de divertimento. Ao invés de pregar a imersão na trama, o autor prefere o distanciamento.
Em tela, inúmeros corpos declamam falas de cunho religioso e existencialista. Refletem acerca de nossos tempos penosos (“A ansiedade é a fundação da sociedade”), ainda que mantenham um otimismo discreto (“Rogo para que minhas fraturas não me adoeçam”), na chave da fé cristã (“És como o homem que conta parábolas”). São utilizadas inúmeras citações a textos religiosos como O Poema do Menino Jesus, de Fernando Pessoa, e o Livro das Lamentações. Ao apresentar seu trabalho na Mostra de Tiradentes, o cineasta o descreveu enquanto “fábula do abismo — abismo do tempo, emocional, e político também”.
O filme parte da estética da liturgia, comumente associada à esfera política tradicionalista, para retratar corpos negros movendo-se por cinema ousado, extremo, de baixíssimo orçamento.
As escolhas estéticas acompanham o teor penitente, grave, sepulcral. Melodias sacras invadem a trilha sonora, enquanto os personagens, estáticos dentro da imagem (em janela próxima do quadrado), entoam as suas falas, privando-se de emoções fortes. Eles vestem roupas simples, totalmente brancas ou pretas, e raramente se encostam. O sangue é permitido somente enquanto sinal de sacrifício — símbolo essencial do cristianismo. No entanto, mesmo a imagem de mãos e pés cobertos de sangue evitam o choque, ou o mínimo apelo às emoções. É preciso se manter no plano das ideias.
As cores e texturas constituem um personagem à parte. Chega a trazer certo alívio quando nos deparamos com imagens de um cinema independente que não sejam marcadas pela pixelização e nitidez excessivas da captação digital. O Mundo dos Mortos possui um aspecto vaporoso, de luzes leitosas e “borradas”, em contornos quase abstratos, que ajudam a retirar os locais e personagens de um espaço-tempo predeterminado. A natureza por onde transitam pode corresponder a uma floresta qualquer, ou então a um paraíso, um purgatório.
Em consequência, os corpos são desprovidos de subjetividade, psicologia, gênero e de classe social. Tornam-se conceitos, veículos de reflexões. O “uniforme” vestido por cada um serve a aproximá-los enquanto seres humanos, ao invés de buscar suas particularidades. Curiosamente, enquanto tantos projetos contemporâneos procuram se aproximar das minúcias de um grupo sociocultural específico, Tavares dá vários passos atrás para valorizar apenas o que tenham em comum.
Assim, as falas soam equivalentes, oriundas de atores naturais, crus, sem preparo dramático para esmiuçar tais significados. Profissionais do teatro se deliciariam com estas falas, porém o cineasta prefere manter o registro íntimo, de aparente simplicidade. Ele jamais demonstra a vaidade (um pecado grave, nesta perspectiva judaico-cristã) de atrair admiração por sua capacidade profunda de composição e direção de atores. Prefere uma criação funcional, coesa, diminuta. A importância da mensagem se coloca acima da necessidade de uma beleza em si.
Mesmo assim, impressionam as cores de O Mundo dos Mortos, como se cada plano correspondesse a uma aquarela, a uma tela pintada em cores homogêneas. Há cenas inteiramente vermelhas, amarelas, verdes — podemos nos imaginar diante dos clássicos do cinema mudo, com seus fotogramas coloridos. Trata-se de uma intromissão tão ostensiva quanto simples — novamente, o avesso dos nossos tempos de filtros e modificações digitais precisas. Certamente, Tavares possui inúmeras referências cinematográficas e filosóficas para a construção destes tableaux-vivants, preocupados com a noção de fotogenia.
Ora, enquanto a imagem se fecha em constantes close-ups nos rostos, a expressividade dos atores não nos oferece qualquer emoção com a qual nos identificar. O resultado se articula nesta pequena provocação das formas, e na frustração das expectativas (considerando um espectador habituado a filmes narrativos clássicos). O ambiente sacro é movido por paixões, mas também pelo recato. Ele aborda o corpo enquanto invólucro sagrado, enquanto a corporalidade contemporânea se aproxima de um campo de batalha política e ideológica.
Logo, o filme parte da estética da liturgia, comumente associada à esfera política tradicionalista, para retratar corpos negros movendo-se por cinema ousado, extremo, de baixíssimo orçamento. A imponência da iconografia cristã, com suas poses enrijecidas, se confronta à maleabilidade de uma câmera que poderia se deslocar facilmente, se quisesse, e aos atores não-profissionais que declamam reflexões imponentes como se conversassem com amigos próximos. O resultado se constrói num tensionamento constante de sentidos e formas, de expectativas e das concretizações. Termina por fornecer mais perguntas do que respostas — como convém aos belos filmes.