O Palestrante (2022)

Humor de todos, humor de ninguém

título original (ano)
O Palestrante (2022)
país
Brasil
gênero
Comédia
duração
120 minutos
direção
Marcelo Antunez
elenco
Fábio Porchat, Dani Calabresa, Antônio Tabet, Maria Clara Gueiros, Otávio Muller, Miá Mello, Paulo Vieira,
Rodrigo Pandolfo, Debora Lamm, Ernani Moraes, Evandro Mesquita, Letícia Lima
visto em
Cinemas

É difícil determinar a quem esta comédia se destina. A resposta poderia ser ampla, e conveniente aos propósitos do marketing: seria um filme para toda a família, todos os gêneros, todas as classes sociais, todas as experiências profissionais. Um filme total. No entanto, por mais que o cinema ambicione tamanho alcance de público, qualquer produtor ou estudioso do mercado sabe que a obra se destina a um grupo específico — podendo, eventualmente, surpreender e ser consumido por quem não se planejava.

O Palestrante se inicia com o que parece ser uma crônica do mundo empresarial. Chefes abusadores, colegas estressados, sensação de despropósito das atividades diárias. Qualquer pessoa que já trabalhou numa grande corporação poderá se identificar com este cenário — pelo menos, até ele ser abandonado por completo pela história. Segue então a perspectiva do filme de férias, com pessoas hospedadas num belo local ornado por piscina e natureza. Ora, o conflito tampouco se desenvolve: promete-se uma caminhada abortada; o jogo de vôlei nunca ocorre. A cena da piscina é curtíssima, de singela função narrativa.

Existe também a possibilidade de uma crítica ao mundo coach, este universo que tem confrontado diretamente o saber acadêmico através de centenas de especialistas autoproclamados que te ensinam como ser feliz, como trabalhar bem, como se tornar rico. Saiam da frente, economistas, cientistas sociais e psicólogos, porque o segredo, esse tempo todo, era ser feliz. No entanto, o filme tampouco satiriza este universo a fundo. As palestras do charlatão são curtas, inconsequentes, evitando explorar tanto o seu funcionamento quanto o teor de vexame que se esperaria da incursão de um iniciante no ramo.

Na ausência destes temas, surgem outros: um jovem rico e mimado que deseja comprar o hotel onde foi concebido; um motorista violento e desligado da empresa para a qual prestava serviços; a busca desesperada de um sujeito de vida morna por uma experiência mais instigante. Infelizmente, nenhum destes elementos se aprofunda a contento, ou ganha uma conclusão adequada. A jornada existencial do homem comum, tema que move o filme, é relegada ao segundo plano: o texto se interessa bastante às consequências da farsa envolvendo o palestrante, porém ignora as razões íntimas que o levam a adotar a identidade de um desconhecido.

O grande potencial dos humoristas se atenua graças à condução morna e ao texto que evita assumir riscos.

A presença de um sujeito fracassado destinado a inspirar os demais soa como premissa perfeita para o humor: como poderia um homem sem sucesso ensinar o sucesso aos funcionários da empresa? Ora, nem mesmo o motor do palhaço triste se desenvolve. Desde a primeira palestra, ele revela um traquejo razoável para o cargo. Guilherme (Fábio Porchat) não sente raiva nem falta da namorada que o abandonou; não manifesta saudade da casa e da vida de antes; não experimenta culpa nem dúvidas quanto à sua masculinidade testada pelas situações. Ele apenas segue em frente.

O grande potencial de O Palestrante se dissipa pela falta de foco. Porchat, criador da trama, brincou em entrevista com a imprensa que tomou precaução para não ser cancelado, nem ofender ninguém. (Com exceção da piada a respeito de indivíduos intersexuais, talvez). Ele transmite essa ideia de que o humor precisa ser ameno, consensual, para chegar ao máximo de pessoas possíveis. Mero engano: as vozes das minorias nunca exigiram piadas inofensivas, e sim aquelas capazes de ridiculizar os opressores, ao invés dos oprimidos.

Assim, o grande potencial de nossos humoristas se atenua graças à condução impessoal e ao texto que evita assumir riscos. Por um lado, um elenco reunindo Porchat, Dani Calabresa, Letícia Lima, Antônio Tabet, Maria Clara Gueiros, Miá Mello, Paulo Vieira, Débora Lamm e Rodrigo Pandolfo soa como o dream team da comédia nacional. Eles são capazes de brincar com as intenções, o tempo das falas, a malícia das palavras. Maria Clara Gueiros expressa um prazer manifesto de trabalhar com o texto; Calabresa consegue atribuir um teor muito pessoal a cada cena.

No entanto, eles se prendem a um texto morno, que pesa a mão na escrita dos diálogos e no controle das situações. Vale lembrar que o absurdo está ligado à abertura ao acaso, ao improvável. Ora, toda reviravolta deste roteiro soa conveniente e previsível. Quando está prestes a ser demitido, Guilherme presencia o enfarto do chefe. Quando precisa de ajuda, recebe o monólogo improvável do colega de voo. Assim que assume a identidade de um verdadeiro palestrante, nenhum fato o contradiz. O mundo conspira para ajudar o falsário, ao invés de atrapalhá-lo. 

O principal sintoma deste humor psicorrígido se encontra na conclusão. Os letreiros são acompanhados dos tradicionais erros de gravação, quando os atores se divertem com os equívocos uns dos outros e riem juntos. Este momento é, de longe, o mais engraçado de toda a sessão, algo que desperta uma pergunta fundamental: por que o humor do filme inteiro não poderia ser igualmente livre, improvisado, aberto ao caos e ao jogo cênico entre atores especializados nisso? Por que enquadrá-los e limitá-los, ao invés de estimulá-los?

É evidente que os problemas não vêm somente do texto, estendendo-se à direção. Marcelo Antunez diminui a potência de algumas cenas graças aos enquadramentos improváveis ou acadêmicos, enquanto o editor Bernardo Pimenta provoca ruídos de sentido ao invés de facilitar o ritmo. A sequência da dupla queda na piscina perde sua força pela decupagem e edição falhas; a fratura no nariz nunca soa minimamente plausível; o ataque de Flávio ao carro jamais desperta real aparência de poder destruir o veículo e ameaçar o adversário. 

O universo se reveste de um faz de conta ingênuo, sem coragem na condução nem firmeza no ponto de vista. Filma-se de maneira protocolar, com muita música de transição alertando quando rir, além de cores fortes para criar uma impressão agradável e fácil ao olhar. Trata-se de um cinema recreativo, espécie de fast food audiovisual buscando distrair o espectador sem fazê-lo pensar a fundo em qualquer um dos temas abordados. 

Ora, o mundo empresarial, a ascensão improvável dos coaches e as relações de gênero no trabalho poderiam gerar piadas muito mais assertivas. O humor pode ser visceral, ousado, improvável, assim como fizeram Monty Python ou Woody Allen no início da carreira. A perspectiva de agradar a todos pode resultar na impressão de que ninguém é plenamente contemplado, caso em que não se satisfaz ninguém a fundo. No Brasil atual, estes temas poderiam ser esmiuçados de maneira tão mordaz que o resultado soa como uma oportunidade perdida.

PS: Assista às entrevistas com o elenco:

O Palestrante (2022)
4
Nota 4/10

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