Corsage (2022)

Um fantasma no palácio

título original (ano)
Corsage (2022)
país
Áustria, Luxemburgo, Alemanha, França
gênero
Drama, Histórico
duração
113 minutos
direção
Marie Kreutzer
elenco
Vicky Krieps, Florian Teichtmeister, Colin Morgan, Finnegan Oldfield, Aaron Friesz, Katharina Lorenz, Resi Reiner, Alma Hasun, Johanna Mahaffy, Alexander Pschill, Norman Hacker, Tamás Lengyel, Jeanne Werner, Raphael von Bargen
visto em
Cinemas

A princípio, está tudo lá: os palácios suntuosos; os jantares com aristocratas, devorando aves raras e bebendo vinhos preciosos; diversas camadas de roupas cobrindo as belas damas, e as camareiras ajudando a vestir tais trajes; as carruagens; os caprichos de imperadores e imperatrizes; o tédio desta gente endinheirada presa numa jaula de ouro; os amores proibidos mantidos em segredo, porém conhecidos por todos; os códigos de conduta e hipocrisias da corte; o desprezo pelas necessidades do povo; a luta dos poderosos para se manterem ao poder. Corsage poderia ser descrito como um filme histórico, “filme de época”.

No entanto, vários elementos separam este drama de tantos equivalentes. Em especial, a diretora Marie Kreutzer retira o aspecto de maravilhamento diante do luxo da corte. Nada de filmar palacetes com luzes esplendorosas, trilha sonora de magia, enquadramentos para valorizar o brilho, o ouro, a ostentação. Ela nunca planeja despertar no espectador a inveja por aqueles personagens, nem a vontade de estar no lugar deles. Pelo contrário, favorece os espaços vazios, a sensação de desconforto da Imperatriz Elisabeth (Vicky Krieps) ao comer sozinha numa mesa longuíssima, cercada por vassalos; e a distância exagerada que precisa percorrer para chegar ao próprio quarto.

Os espaços, tempos e códigos de conduta são filtrados por um olhar de absurdo e indignação. Longe da menina mimada e ingênua de Maria Antonieta (2006), das assistentes ambiciosas e perversas de A Favorita (2018), ou dos libidinosos ocupantes do palácio em Ligações Perigosas (1988), paira neste caso um olhar de desprezo e incompatibilidade da heroína com aquele meio. Ela é esperta, inteligente, e sabe utilizar o poder a seu favor, porém sem qualquer expectativa de ascender ao trono ou subir algumas escadas no controle do regime. Esta mulher se entedia, brincando com as pessoas ao redor como quem manipula bonecos por alguns minutos, e depois os esquece no canto da sala. 

A Imperatriz Sissi desta ficção possui uma consciência surpreendente de classe, de gênero e das regras sociais de sua época. Ela repudia a dominação masculina, a vigilância de sua aparência, a proibição de participar em decisões políticas. Ao mesmo tempo, faz pouco para romper com estas convenções. Seus protestos serão íntimos, espécie de traquinagens que aplacam um vazio e uma dor evidentes. Ela corta os cabelos longos, para o desespero da cabeleireira (“Este era o trabalho de uma vida inteira!”), finge um desmaio em público, ri exageradamente num jantar de negócios. 

Tudo ocorre ao redor de Elisabeth, mas raramente por causa dela. Narra-se a vida de uma mulher coadjuvante da própria história, e deprimida porque ciente disso.

Seus gestos de resistência se mostram ao mesmo tempo adultos e infantis, como se ela buscasse evidenciar a indignação de seu cargo inerte (“Eu governo o país, você precisa apenas representá-lo”, indica o marido), porém longe da intenção de romper barreiras. Há um caráter lânguido, inerte nesta mulher, evidenciado pela cena de dança sozinha no final, pela cavalgada noturna com a filha semiadormecida, pelo creme de chocolate derramado sobre a cara. O espectador nunca é convidado a ter piedade desta mulher, nem se chocar com suas atitudes. Permanecemos próximos do corpo e dos gestos, porém distantes das motivações. O que se passa na cabeça da mulher tão espontânea, abrupta?

Vicky Krieps ajuda muitíssimo na construção desta ambiguidade. A atriz sabe utilizar os pequenos olhos vidrados, num misto de cansaço e atenção, enquanto deixa o corpo mole, flexível, para os gestos mais violentos (com o primo, ou durante o jantar, por exemplo). Ela ri enquanto se oferece ao ato sexual, e quando recebe uma resposta positiva do marido, nega a aproximação deste. A atriz desenha uma personalidade falha, contraditória, capaz de saltar da janela sem real intenção de matar, e trair sem vontade de manter um relacionamento extraconjugal de fato. Krieps domina o teor bruto das palavras, porém doce da voz; a sensação de pertencimento (ela ocupa a totalidade das cenas) face a um aspecto de ausência, de mulher que não estava lá

Tudo ocorre ao redor de Elisabeth, mas raramente por causa dela. Narra-se a vida de uma mulher coadjuvante da própria história, e deprimida porque ciente disso. Tal percepção poderia se resumir ao conformismo, caso a diretora não embutisse algumas metáforas e recursos de linguagem importantes. Primeiro, a trilha sonora rompe com a impressão de algo solene ao optar por um folk pop contemporâneo e melancólico, cortesia da artista francesa Camille. O tema recorrente produz um afastamento do real, próximo da fantasia e do delírio, como convém a esta adaptação muito livre dos fatos.

Segundo, a montagem articula cenas que não necessariamente ocorrem uma após a outra, ou em decorrência da outra. A linearidade tão tediosa nas obras históricas “fiéis” cede espaço a uma percepção impressionista da heroína, percebida em cenas desconexas, esquetes em si próprias, destinadas a construir a personalidade, os gostos e desejos. Pode-se dizer que o longa-metragem evoca a figura de Sissi mais do que a representa ou reconstitui. Alguns enquadramentos enveredam pelo tom surrealista, caso da cabeça encostada no teto, ou das “quatro imperatrizes” (Sissi e três ajudantes, vestidas com roupas idênticas) perambulando pelo barco em movimento.

Além disso, a direção explora muitíssimo bem os símbolos-chave da opressão feminina naquele contexto: os cabelos longos, o espartilho apertado para ilustrar a magreza (“Mais forte, mais forte!”), o cigarro fumado em segredo. Estes elementos retornam com frequência, ganhando novos significados e ilustrando o teatro das aparências. A protagonista, e narradora de sua própria história, comenta com desdém as ordens de terceiro, duvida do afeto de apoiadores e da cordialidade da imprensa. “Ninguém ama ninguém”, ela dispara, numa frase que define a abordagem geral do filme. 

Os únicos laços verdadeiros de carinho nascem entre Elisabeth e suas criadas, em especial, Marie (Katharina Lorenz), a quem terceiriza a tarefa de representá-la em aparições onde um véu pode ocultar a identidade. A cada falsa aparição de Sissi, a mulher percebe sua crescente invisibilidade, ou pelo menos, descartabilidade naquele contexto. Não por acaso, o cinema dos primeiros tempos surge no interior da trama para propor a persistência pela imagem, uma forma de continuar a existir mesmo após a morte, ou após o esquecimento. 

A imperatriz é uma mulher que se esvai, que desaparece. Por isso, some pela noite, esconde-se pelo castelo, oculta-se pelo uso de sósias. “Pensei que sua majestade fosse um fantasma”, comenta um jornalista maldoso, diante da mulher emudecida. O rosto expressa a lassitude de quem já escutou coisas semelhantes muitas vezes antes, e talvez por isso, perdeu a capacidade de se indignar. Kreutzer ilustra esse sentimento através de imagens impecáveis em composição, luz e montagem, valorizando o silêncio, a perturbação com o meio, a solidão e o tédio. A cineasta propõe a Sissi e ao espectador que se admire fatos históricos com descrença e senso crítico, diante dos quais nasce uma beleza da inconformidade, ao invés da adesão. 

É fascinante se deparar com cenários tão ricos e inertes; pessoas tão poderosas quanto tristes; ações tão consequentes (a queda do cavalo, o defenestramento, o corte do cabelo) quanto fortuitos (no dia seguinte, a ordem se restaura como se nada tivesse ocorrido). Tudo e nada acontece a esta mulher que se presta ao sexo e à morte sem real desejo, e com preocupação mínima da consequência de seus atos. Em ambos os casos, é rejeitada, esquecida — tanto pela morte, quanto pelos possíveis amantes. Corsage ilustra uma vida de frustração, um dinheiro que decora, mas não compra nada. Trata-se de uma obra politicamente feroz revestida de imagens plácidas e minimalistas.

Corsage (2022)
8
Nota 8/10

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