O Circo Voltou (2021)

O pequeno teatro do circo

título original (ano)
O Circo Voltou (2021)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
86 minutos
direção
Paulo Caldas
visto em
Cinemas

As intenções por trás de O Circo Voltou são tão nobres quanto coerentes, no sentido político do discurso. Ao acompanhar a família que mantém o circo itinerante Spadoni, o diretor Paulo Caldas reflete sobre a persistência de uma arte popular de pouco reconhecimento institucional. Ele relembra a importância desta forma de espetáculo que vai até o público, ao invés de esperar que se venha até ele. Por isso, resgata o circo enquanto vocação e estilo de vida, muito além de um mero trabalho.

Além disso, acompanha a trajetória do grupo Brasil adentro, entre São Paulo e Alagoas, investigando reação dos espectadores em pequenos vilarejos, com o foco em comunidades indígenas e assentamentos quilombolas. Assim, duas formas de resistência se encontram: a artística e a política, que, no fundo, representam um movimento só. Num país que acaba de atravessar quatro anos de extrema-direita no poder, esta forma de reunião e fortalecimento entre marginalidades se faz importante e rara. Há uma bela corrente de transmissões no cinema dedicado ao circo, que se dedica, por sua vez, aos habitantes desfavorecidos do sertão e do interior.

No entanto, existe uma lacuna considerável entre intenções e realizações, ou entre o conceito e o objeto final. O documentário sofre com problemas de roteiro e linguagem, que prejudicam a experiência do espectador enquanto minimizam o alcance político do discurso. Isso se deve, na maior parte, à quantidade expressiva de recursos ficcionalizantes, ou seja, roteirizados, controlados e estimulados pelo diretor, em estilo bastante artificial. Embora sejam comuns em documentários, eles incomodam quando tentam se passar pelo real, disfarçando-se de espontaneidade.

Este é o aspecto mais incômodo do dispositivo adotado: ele nunca se dissocia por completo da estética jornalística e televisiva.

Tais ferramentas vão da narração aos diálogos, passando pela conversa entre os familiares e os encontros com lideranças indígenas e quilombolas. No interior do carro, pai, mãe e filho conversam a respeito de seu histórico no circo. O ângulo único da câmera acoplada junto ao banco dos passageiros coloca a mãe em primeiro plano. Esta imagem se repete, sem variações, do começo ao final da trama. No percurso, lançam um ao outro perguntas como “Quando surgiu a ideia de criar uma escola de circo?”. “Você já esteve aqui (nesta cidade) com o circo?”.

Ora, todos ali conhecem a resposta. Perguntam-se para ajudar a tarefa de storytelling da direção e para fornecer a resposta ao espectador. Assim, o filme evita as tradicionais entrevistas diretamente para a câmera, comuns aos talking heads. Em contrapartida, produz um efeito ainda mais incômodo, que os franceses chamam de “Eu sei, você também sabe”, quando duas pessoas questionam elementos cuja resposta é conhecida por todos os envolvidos. “Pai, você sempre falou muito de J. Mariano. Quem é J. Mariano?”. “Filho, J. Mariano foi…” e segue-se a explicação.

Mais do que condicionados, os diálogos soam roteirizados, didáticos em sua maneira cristalina de se apresentarem ao espectador. As narrações em off, provindas de um talentoso palhaço mirim, possuem a entonação de um spot publicitário. É possível que os criadores almejassem um estilo lúdico e ingênuo, próximo daquele empregado pelos apresentadores durante os espetáculos circenses. No entanto, o cinema possui seus recursos próprios, caso em que convém se dissociar da estrutura da arte alheia.

As artificialidades vão além. José Wilson, o patriarca e líder do grupo, explica-se de maneira pedagógica a todos que encontra: “A gente é do mundo, e de todas as cidades”. “A gente é nômade. A gente viaja”. É curioso que a montagem opte por manter todas estas descrições. O documentário se dirige a um espectador que, além de não frequentar os picadeiros, nem sequer sabe do que se trata, precisando de uma introdução muito básica ao beabá do circo. 

Logo, há menos espaço para circunstâncias estruturais (salário, subsídios, transmissão de conhecimento, técnica) e geracionais (há filhos que se desgarraram? Todos mantêm uma paixão semelhante?) do que para uma constatação de que o circo existe. O discurso se prova menos analítico do que factual: há, pelo interior do Brasil, um circo que roda as estradas e se apresenta em cidades pequenas. De certo modo, o ponto de partida também é o ponto de chegada. “É a primeira vez que a gente vem a uma comunidade quilombola”. “É a primeira vez que a gente vem a uma comunidade indígena”, explica Wilson. 

Infelizmente, mal vemos estas comunidades por dentro. Nem a apreciação do público, nem os números circenses de mágicos, equilibristas, trapezistas e outros recebem devida atenção da montagem. As conversas entre o protagonista e os líderes das cidades, em plano único, com todos sentados lado a lado, possuem o caráter engessado e formal de uma reportagem. Este é o aspecto mais incômodo do dispositivo adotado: ele nunca se dissocia por completo da estética jornalística e televisiva. A viagem junto ao Spadoni carece de novos planos, de mais interações e, sobretudo, de construções autorais e autônomas de linguagem — isso vindo de um diretor cuja carreira está repleta de belas poesias, tanto na ficção quanto no documentário.

Em raros instantes, O Circo Voltou demonstra a potência esperada: uma sequência veloz articula os giros no globo da morte com o voo de dois pássaros (semelhantes aos motociclistas) e com a passagem de dois carros na rodovia. A arte se incrusta na vida cotidiana, e o público, na esfera privada. Como seria belo encontrar mais passagens do tipo, mais instantes realmente espontâneos, sem a preocupação de se explicar com tamanha frequência! Ainda que de maneira modesta, o longa-metragem alcança o objetivo de nos recordar sobre a existência de culturas e povos que persistem pelo país.

O Circo Voltou (2021)
4
Nota 4/10

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