The Devil’s Bath (2024)

A tortura elegante

título original (ano)
Des Teufels Bad (2024)
país
Áustria, Alemanha
gênero
Terror
duração
121 minutos
direção
Veronika Franz, Severin Fiala
elenco
Anja Plaschg, David Scheid, Maria Hofstätter
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

É impressionante a capacidade do cinema de terror em representar alguns temas e sentimentos considerados tabus no cinema tradicional, no drama “de bom gosto”. Quantas ficções buscando o público amplo filmariam a morte cruel de um bebê? Quais longas-metragens retratariam as torturas do corpo de uma mulher, com os dedos cortados um a um, para servir de exemplo à comunidade? Ou um cadáver exposto em praça pública? Não é por acaso que o horror tem como fundamento a exploração do nosso medo da morte.

O gênero possui a capacidade de nos confrontar a sentimentos que os bons costumem preferem guardar para a esfera íntima, enquanto algo vergonhoso, privado, “desnecessário”. Não por acaso, os filmes de terror comandados por diretoras no Festival de Berlim (The Devil’s Bath, Cidade; Campo, Love Lies Bleeding) constituem as ilustrações mais potentes das pressões exercidas sobre as mulheres, desde as sociedades de séculos atrás até os dias atuais.

Aqui, os diretores Veronika Franz e Severin Fiala apostam no horror “folk”, ou seja, folclórico, ligado às tradições e comportamentos de outras épocas. O distanciamento desempenha um papel metafórico evidente: por meio de gestos bárbaros cometidos antigamente, dialoga-se com um punitivismo equivalente no século XXI. Nós não cobrimos as mulheres “perdidas” com a pele de animais antes de exibi-las pela cidade, como fazem os habitantes da trama austríaca-alemã, mas as prendemos caso abortem, humilhamos caso exibam seus corpos. As estratégias de vingança se atualizam, porém, o desejo vingativo se mantém o mesmo.

Os criadores dispensam o maniqueísmo e a intromissão do “mal” mediante forças sobrenaturais. Todas as formas de correção perversa serão dolorosamente humanas, aplicadas pelos personagens contra si mesmos.

O longa-metragem imagina uma mitologia particular de obrigações femininas. Para engravidarem logo após o casamento, guardam um dedo humano sob o colchão. Para terem uma vida feliz em casal, são erguidas e carregadas por vários homens que as tocam. Caso descumpram alguma tarefa doméstica (cozinhar, limpar a casa, ajudar com os animais), estarão certamente possuídas pelo demônio, imersas no “banho do Diabo” evocado pelo título. A autonomia se torna uma impossibilidade: ou uma mulher corresponde a todas as obrigações evocadas, sobretudo pelas vizinhas, sogras e mães, ou estarão condenadas ao inferno. Não há meios-termos — elas serão julgadas de acordo com princípios muito mais firmes do que aqueles aplicados aos maridos e filhos.

Deste modo, a linguagem extrema empregada pelos diretores se justifica na busca por escancarar preceitos morais. Por um lado, apostam numa estética polida, elegante, formada por enquadramentos amplos, de profundidade de campo infinita; movimentos estabilizados de câmera, aproveitando a beleza da paisagem; além de evidente cuidado na construção de figurinos e cenários. Cada sequência noturna em baixas luzes (por se tratar de uma sociedade pré-eletricidade) oferece uma riqueza impressionante de detalhes.

Por outro lado, este refinamento torna os instantes sangrentos ainda mais provocadores, graças ao contraste com a estética adotada. Filmes assumidamente grotescos, movidos por personagens nojentos em mundos puídos (pense em Terrifier, Ursinho Pooh: Sangue e Mel) não surpreendem quando alguma morte perversa entra em cena — o universo nos prepara para este momento a cada minuto. Em contrapartida, diante de uma sociedade bela, com imagens lindamente compostas, iluminadas e montadas, a tortura nas costas de uma mulher surte um impacto considerável.

No papel principal, Anja Plaschg apresenta uma composição excelente. Conhecida pela carreira musical, através do codinome Soap&Skin, ela concebe uma mulher ora tímida, ora infantil, porém com instantes de esperteza e malícia quando necessário. A impactante sequência de conclusão apresenta um controle dramático raro, além de materializar indícios que a narrativa plantava discretamente, desde o início da jornada. Franz e Fiala seguem à risca a premissa de que a boa conclusão precisa soar, simultaneamente, surpreendente e óbvia. Ela choca quando ocorre, mas, aos olhos do espectador, não poderia ser diferente. Algo semelhante ocorre aqui.

Os criadores também dispensam o maniqueísmo, a intromissão do “mal” mediante forças sobrenaturais. Pelo contrário, todas as formas de correção perversa serão dolorosamente humanas, aplicadas pelos personagens contra si mesmos. Talvez por isso o resultado tenha incomodado tanto: nas salas do cinema, diversos críticos de cinema abandonaram a sessão, antes de emitirem comentários indignados pelos corredores. “Um filme com morte de criança, nos nossos dias, onde já se viu?”

Ora, é evidente que os autores não defendem os maus-tratos a crianças, nem a flagelação feminina, muito pelo contrário. Em paralelo, a dupla ultrapassa a mera denúncia de uma exploração machista que perdura desde o início dos tempos. O longa-metragem estuda manifestações de distúrbios mentais antes de serem conhecidos por este nome (e, portanto, estudados ou compreendidos). Fazem da saída chocante, encontrada por Agnes e pela sociedade local, um exemplo metafórico das alternativas de independência oferecidas às mulheres em um sistema opressor. 

A sessão possui um papel simbólico ainda mais forte por se situar na mostra competitiva da Berlinale. Os grandes festivais mundiais (Cannes, Berlim e Veneza) saturam as suas seleções centrais de ficções, quase sempre dramas, com inserções discretas de alguma comédia ou premissa fantástica. Um terror digno deste nome, assumido em sua proposta, se mostra uma raridade por ferir o gosto polido do “cinema de festivais”, concebido para prêmios e para a exportação. A decisão de inserir um longa-metragem de horror na disputa pelo Urso de Ouro, ao lado de obras comportadas e consensuais, equivale a um gesto ousado, e importante, do curador Carlo Chatrian. 

Felizmente, ele tinha à disposição um belo exemplar do cinema de gênero para chocar os gostos conservadores de parte da crítica e do público. Além disso, exibe uma narrativa capaz de debater pautas e processos estéticos mais apropriados aos tempos contemporâneos do que os novelões cafonas de From Hilde With Love ou Another End, por exemplo. O terror se encontra dois passos à frente das convenções artísticas sociais e, assim, aponta àquilo que os novos autores desenvolvem de melhor.

The Devil’s Bath (2024)
8
Nota 8/10

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