Onoda: 10 Mil Noites na Selva (2021)

A guerra como crença

título original (ano)
Onoda, 10 000 Nuits Dans la Jungle (2021)
país
França, Japão, Alemanha, Bélgica, Itália, Camboja
gênero
Drama, Guerra
duração
173 minutos
direção
Arthur Harari
elenco
Endō Yūya, Tsuda Kanji, Nakano Taiga, Matsuura Yūya, Chiba Tetsuya, Katō Shinsuke
visto em
Cinemas

Onoda: 10 Mil Dias na Selva promove uma experiência muito peculiar. Num primeiro momento, pode sugerir uma produção de guerra convencional, a partir dos militares japoneses resistindo à invasão norte-americana na ilha de Lubang, Filipinas, em 1944. O tenente Hiroo Onoda seria o herói perfeito para um filme de ação: ele possui uma moral inabalável, disciplina exemplar, e jamais se rende face às dificuldades. No entanto, a impressão de dissipa com rapidez.

Primeiro, graças à atmosfera proposta pelo diretor Arthur Harari. O espectador se depara com imagens granuladas, de belas cores saturadas, em registros silenciosos e grandes planos abertos. A guerra se traduz numa sucessão de cenas de espera, de caminhadas silenciosas ou reflexões diante de uma paisagem vazia. O inimigo nunca dá as caras em quase três horas de duração. Logo, o interesse do cineasta se afasta do espetáculo de valentia e força. Ele busca, por assim dizer, uma espécie de filosofia da guerra, ao invés de sua práxis. Afinal, o que leva os homens a lutarem?

Segundo, Onoda revela, progressivamente, uma formação militar distante dos ideais de honra que dominam o imaginário popular acerca dos japoneses. O protagonista fictício, baseado no militar real, integrou um programa clandestino de combate, dedicado a uma “guerra secreta”. “Mentira, traição, humilhação. Nada é proibido para vocês. […] Vocês são seus próprios oficiais”. A lógica pregava a sobrevivência a qualquer custo, caso em que regras morais e éticas poderiam, e deveriam, ser rompidas. Não se guerreava em nome da nação, e sim pela própria vida. A batalha se converte num inesperado desafio pessoal e íntimo: ganha aquele que não morre.

Terceiro, o roteiro jamais faz alarde a respeito de fortes guinadas na trama. A Segunda Guerra Mundial acaba, porém ninguém avisa Onoda. Ele segue a postos, escondido, procurando os americanos. Este fator poderia ser tratado como uma tragédia grega, um instante de tensão, uma explosiva ironia do destino. Ora, a montagem inabalável segue em ritmo análogo ao do herói, para quem os dias se sucedem sem transformações de tom ou objetivo. Por isso, cuidado: há perigo na esquina. Os americanos ainda podem estar na selva, escondidos, prestes a atacar.

A crença se torna o tema mais importante desta obra monumental, espécie de opus de uma guerra íntima e invisível.

Os homens começam a desistir da luta (“A gente não viu inimigo nenhum!”), desertando, morrendo de fome ou doença. Onoda permanece. Para o espectador, resta a triste ironia de saber que a guerra se encerra em 1945, porém o tenente se mantém a postos até 1976, na mesma ilha, aguardando ordens para atacar, ou talvez encerrar o combate. Existe um caráter próximo do teatro do absurdo, da fantasia. Harari, por sua vez, prefere contemplar a rotina deste sujeito com uma admiração silenciosa, parceira, contrária aos julgamentos morais. Onoda não é louco nem herói, apenas um sujeito que adotou um regime muito particular de crenças.

Afinal, a crença se torna o tema mais importante desta obra monumental, espécie de opus de uma guerra íntima e invisível. O militar acredita ainda estar em batalha, por isso, mantém a arma presa ao punho, e segue as metas traçadas inicialmente. Surgem, aqui e acolá, inúmeros indícios de que o conflito mundial teria chegado ao fim. Para Onoda, trata-se de notícias falsas, fabricações do inimigo para vê-lo baixar a guarda. Ele não cederá jamais. O homem desacredita no que vê, no que escuta, e passa a acreditar naquilo que gostaria. O real se molda aos seus desejos.

Por este aspecto, Onoda: 10 Mil Dias na Selva soa tão contemporâneo, e próximo do Brasil atual. Vivemos o período em que milhares de pessoas acreditam em falas delirantes de um chefe de Estado, descaradamente falsas. Imagens grosseiramente manipuladas em computador e notícias impossíveis são toleradas por fãs (de onde surge o sentido de fanatismo) do atual presidente. A política se converte em religião, em questão de fé: num mundo de incertezas, prefiro acreditar naquilo que corresponde às minhas ideologias. Caso Onoda vivesse no século XXI, poderíamos falar sem dificuldade em fake news.

Esta lógica afetiva em relação à realidade é levada ao paroxismo pela permanência de cerca de 30 anos na selva. No fundo, talvez o herói já soubesse do término da guerra. No entanto, havia prometido a si mesmo um combate feroz, uma luta sanguinária pela sobrevivência, além do retorno com glória e fama. Na ausência destes elementos, recusa-se a abandonar o terreno de combate: o adversário haveria de aparecer, mais cedo ou mais tarde. O que resta de um guerrilheiro sem a guerra? Que propósito tem uma vida de simulacros?

Pode-se sublinhar um aspecto importante na construção psicológica deste homem: a virgindade. Onoda nunca teve experiências com mulheres, algo que se tornou ainda menos provável na selva, entre os homens. A vontade de concretizar o sexo se encontra com a vontade de concretizar a morte: ambos permanecem no campo das ideias, como metas de uma virilidade distante. O corpo segue como uma abstração, assim como a vitória e o retorno. O tenente leva uma vida presa às ideias, tão satisfatória em si própria (ele resistiu quando todos pereceram ou partiram) quando incompatível com a vida de volta ao Japão. Por isso, a única possibilidade era permanecer na natureza solitária.

Harari preserva um olhar atento, porém respeitoso e distanciado. A câmera evita os close-ups nos homens, mas, em paralelo, recusa-se a admirá-los à distância, como se fossem espiados. O posicionamento da imagem — e, por extensão, do espectador — se encontra na função de um soldado suplementar. Quando todos abandonam Onoda, resta a imagem. O cinema permanece junto a este corpo triste e firme, ano após ano. O uso da granulação da película, os planos fixos e a amplitude dos espaços permitem compreender a pequenez do sujeito isolado num cenário gigantesco.

Enquanto isso, o roteiro se divide em três atos rígidos, cada um ocupando cerca de uma hora de duração: I. A guerra real, junto aos soldados famintos e frágeis; II. O luto da guerra, quando pairam dúvidas quanto à continuidade dos enfrentamentos; e III. A solidão, quando o herói mergulha numa espécie de guerra particular, invisível, íntima, cujo sentido se completa apenas para ele próprio. A chegada de um turista, nos anos 1970, apenas explicita a distância entre a compreensão materialista e capitalista do mundo e o regime monástico abraçado pelo militar.

As atuações contribuem ao respeito não-idealizado pelo personagem. Yûya Endô, na juventude, e Kanji Tsuda, na fase adulta, oferecem uma compreensão profunda deste homem, além da guinada entre a busca por uma vitória material e fatual, a princípio, para uma conquista espiritual e moral, em seguida. A interação com os colegas de batalhão, e a tristeza de ver um rádio de pilha parar de funcionar transmitem a força da direção em captar pequenos gestos cotidianos.

Diversos filmes de guerra opõem os objetivos macropolíticos ao efeito concreto na vida dos indivíduos. A grande singularidade deste longa-metragem se encontra na representação unicamente psicológica da Segunda Guerra Mundial. Jamais vemos canhões fumegando, tropas correndo, ataques mirabolantes, fugas arriscadas. A ferocidade do combate se passa tão somente na cabeça de Onoda, que vive, durante a metade de sua existência, os dilemas espirituais de uma guerra imaginária. É uma obra belíssima, repleta de poesias e respiros, que mergulha o espectador numa meditação acerca da natureza humana.

Onoda: 10 Mil Noites na Selva (2021)
9
Nota 9/10

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