O Peso do Talento (2022)

O cinema do faz de conta

título original (ano)
The Unbearable Weight of Massive Talent (2022)
país
EUA
Gênero
Comédia, Ação
Duração
107 minutos
direção
Tom Gormican
Elenco
Nicolas Cage, Pedro Pascal, Tiffany Haddish, Sharon Horgan, Paco León, Neil Patrick Harris, Lily Mo Sheen, Ike Barinholtz, Demi Moore
visto em
Cinemas

Há um caráter agridoce na transformação de atores de Hollywood em personas. Chega o momento em que determinadas celebridades são convidadas a parodiar a si próprias nos cinemas, num misto de paródia e homenagem às suas forças e fraquezas. O cinema funciona como um equivalente do roast norte-americano, ou seja, a prática de atacar amigavelmente pessoas de quem se gosta. A piada se torna um gesto de afeto, e de confirmação da importância do alvo, a quem se dedica tempo e esforço no exercício das piadas pré-roteirizadas.

Jean-Claude Van Damme interpretou um ator fracassado de filmes de qualidade duvidosa em JCVD (2008), e Bill Murray encarnou um ícone envelhecido do cinema de gênero, reverenciado nostalgicamente em Zumbilândia (2009). Em paralelo, John Malkovich satirizou sua aparência de intelectualidade em Quero Ser John Malkovich (1999). Agora, Nicolas Cage interpreta Nicolas Cage, um ator maneirista e egocêntrico, que participa de um número excessivo de produções de ação em O Peso do Talento (2022). Ele se esforça para conquistar um papel cobiçado, mas exagera tanto nos testes que assusta o produtor.

O filme se inicia com a frase “Nicolas Cage é incrível”, e se encerra com as palavras “Nicolas Cage”. Os personagens citam A Rocha (1996), A Outra Face (1997), 8mm (1999), O Capitão Corelli (2001), A Lenda do Tesouro Perdido (2004), Mandy (2018) e Os Croods 2: Uma Nova Era (2020), entre outros. No percurso, assistem a filmes estrelados pelo ator, visitam um museu repleto de objetos dedicados ao herói, dentre os quais se insere uma estátua de cera grotesca moldada segundo o intérprete. 

O projeto, em si próprio, representa uma espécie de museu Nicolas Cage em formato audiovisual. Talvez a melhor escolha do diretor e roteirista Tom Gormican seja o tom de farsa, adequado à figura parodiada. Ao invés da celebração solene de seu protagonista, decide impregnar a estética dos tiques e trejeitos de Cage. A voz gritada, os ataques descontrolados de fúria, a aparência de descaso são sublinhadas ao limite voluntário da caricatura. Aqui, o ator interpreta a versão ridícula, e dois graus acima do real, de si próprio, ao lado de um Pedro Pascal cada vez mais confortável nesse tipo de humor físico.

O dispositivo encontra seu ápice na figura de um conselheiro a Nicolas Cage, oferecendo dicas de quais papéis aceitar, e como lidar com a carreira em crise. Trata-se de um alter-ego personalizado, “Nic Cage”, uma representação do ator em versão rejuvenescida digitalmente, tão grosseira quanto a estátua de cera. A imagem do protagonista de converte em ícone, gadget, a exemplo da almofada com seu rosto estampado. A decisão de colocar o artista real para interagir com versões de si próprio representa o ápice dessa metalinguagem delirante.

O projeto representa uma espécie de museu Nicolas Cage em formato audiovisual. Talvez a melhor escolha do diretor e roteirista Tom Gormican seja o tom de farsa.

Cage se entrega ao jogo com gosto. Ele aceita as piadas quanto ao fim da carreira, aos tempos gloriosos passados, mas também respeita a resiliência de seu personagem. Existe uma ternura evidente pelo homem falho, que presta tamanha atenção à carreira que negligencia a filha e a esposa, perdendo-se num universo egocêntrico. O herói (ou anti-herói) se identifica com a figura clássica do cinema independente norte-americano: o macho frustrado, fracassado profissional e afetivamente, porém dotado de boas intenções, fazendo o possível para se redimir. 

Este seria, portanto, o material perfeito para uma tragicomédia leve, ou para um road movie onde Cage, o personagem, reencontraria sua força e foco. No entanto, Gormican insiste em transformar O Peso do Talento num filme de ação, em referência aos clássicos do gênero interpretados pelo protagonista. Entram em cena investigadores da polícia, traficantes europeus, uma jovem sequestrada. Contra a sua vontade, o ator em vias de se aposentar precisa desempenhar um papel que só tinha interpretado no mundo da ficção. Assim, Nicolas Cage real interpreta um Nicolas Cage fictício que precisa atuar como os personagens célebres dos filmes antigos de Nicolas Cage.

Infelizmente, o projeto se enfraquece bastante conforme investe nos caminhos da aventura. É certo que Gormican jamais dedica atenção real a este segmento, oferecendo cenas de luta mal coreografadas, perseguições fracas e fugas destituídas de tensão. Seria possível ler a baixa qualidade deste segmento pelo prisma autoconsciente: as cenas seriam pouco convincentes porque serviriam somente de referência decalcada às produções sérias. No entanto, o componente policial ocupa uma parcela progressivamente grande da trama, até chegarem as cenas em que Cage se torna secundário em relação às disputas de mafiosos e agentes da CIA.

Assim que a imagem despreza seu personagem principal, reforça a falta que Nicolas Cage faz num projeto que pretendia ser inteiramente dedicado a ele. Tiffany Haddish e Ike Barinholtz encarnam oficiais difíceis de acreditar, graças à ausência de objetos, cenários e acessórios típicos da investigação, e capazes de contribuir à verossimilhança de suas funções. De onde tiram as pistas? Onde se encontra o resto da equipe? Ambos se limitam a disparar ordens ao telefone, às vezes via mensagens de texto, todas prontamente acatadas pelo herói. 

Em paralelo, os traficantes nunca são vistos traficando, e sequestradores jamais sequestram de fato. Precisamos acreditar no que dizem, neste cenário de faz de conta muito próximo da imaginação infantil, quando os pequenos se declaram caubóis ou xerifes e passam a se tratar como tais. Não existem indícios de que estes criminosos e justiceiros da lei estejam ancorados em qualquer forma de plausibilidade. Sem saber o que fazer com estes adversários, o roteiro simplesmente os esquece quando deixam de cumprir uma função na trama.

Por trás da aparência caótica, repleta de gritos e explosões, O Peso do Talento segue um caminho previsível na conversão de Cage em herói, e no desfecho oferecido ao mesmo. O cineasta “salva o dia” ao reafirmar que os perigos estão distantes, e o amor familiar reinará. Para uma obra que se pretendia subversiva, ou pelo menos disposta a ridicularizar os códigos e clichês, ela os abraça com pouco distanciamento crítico na reta final, quando o percurso do ator-fracassado-genial cede espaço à trajetória doce de redenção e idolatria. 

O projeto diverte, é claro, pelas inúmeras citações em terceira pessoa, e piadas internas que devem cativar os fãs do ator. No entanto, permanece no nível da brincadeira entre amigos, uma eterna piscadela que jamais reflete seriamente sobre a ascensão e queda do astro, a transformação da indústria ou o estilo “xamânico” de atuação de Cage. Brinca-se por brincar, funcionando bem na função de escapismo, porém mal enquanto digressão a respeito da indústria do entretenimento. É difícil imaginar a experiência que marque os espectadores por bastante tempo depois da sessão.

O Peso do Talento (2022)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.