Aparentemente, entre os títulos selecionados para o Festival de Berlim, há filmes de amor e filmes de não-amor. A seleção tem se dividido entre obras que lidam ostensivamente com o sentimento amoroso, manifestando uma crença profunda na paixão e nos encontros do destino (She Came To Me, Someday We’ll Tell Each Other Everything) e os projetos cínicos, sobre o fato que não se ama mais hoje em dia, e estamos tomados pelo ódio (Manodrome, The Survival of Kindness). O sentimento amoroso nunca existe enquanto elemento suplementar, mero traço na construção de personagens: ele precisa constituir o conflito central, seja pela presença, seja pela ausência.
Past Lives se encontra no time dos românticos. Na trama, Nora (Greta Lee) é uma mulher que imigrou da Coreia do Sul para o Canadá, e então para os Estados Unidos, onde firmou residência. Ela deixou no país de origem um amor de infância, quando tinha apenas 12 anos. Doze anos mais tarde, reencontra o rapaz na Internet, e trocam mensagens. A chama se reacende, até perceberem que a distância apenas maltratará a ambos. Em seus países, conhecem outras pessoas, apaixonam-se, casam-se. No entanto, o caso jamais será esquecido por completo.
Trata-se de um longa-metragem que acredita no amor, em suas diversas formas, através de um filtro de maturidade. Hollywood sempre associou a profundidade do sentimento à comédia, à infantilização, ao desajuste social — pessoas apaixonadas tropeçam e caem, dizem palavras que não deveriam, negligenciam compromissos por dedicarem tempo demais aos próprios sentimentos. Aqui, em contrapartida, acredita-se na capacidade de amar duas pessoas em simultâneo, de maneiras distintas, incluindo a compreensão dos terceiros a respeito dos afetos passados de seus cônjuges.
Past Lives desperta uma alegria triste, uma impressão de competência segura e desinteressante. O espectador nunca é provocado a pensar, a opinar, a refletir sobre embates morais ou éticos, porque eles inexistem.
Esqueça, portanto, o amor-espetáculo, transformador, devastador. Este drama prefere as emoções que persistem, ainda que adormecidas em alguns momentos, e vibrantes em outros. O conceito sul-coreano de In-Yun é utilizado para sugerir que todos podem ter se cruzado em vidas passadas, convivido em outros planos de existência. De certa forma, estamos sempre conectados, e afetos jamais morrem, apenas se reconfiguram em novos tempos. Em período de multiversos, podemos falar em multiversos sentimentais, com o acréscimo do filtro indie-chic-blasé que a produtora A24 sabe imprimir tão bem.
A este propósito, muito tem se discutido a respeito da autoria da produtora norte-americana independente. Em poucos anos, ela estabeleceu um estilo próprio, uma forma de fazer cinema de qualidade com baixo orçamento, valorizando novos autores. Está prestes a conquistar o Oscar de melhor filme com Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, e tem a possibilidade de ganhar prêmios de destaque em Berlim. Ainda que trabalhem com dezenas de autores distintos, os produtores garantem uma confecção sofisticada, com aparência de simplicidade, focada nos sentimentos e na psicologia dos personagens — sobretudo, opondo-se às fórmulas de idealização romântica dos estúdios.
Em contrapartida, tamanhas qualidades se equilibram com alguns vícios e tiques, cada vez mais perceptíveis conforme os projetos da marca se multiplicam. Past Lives é pontuado a cada dois minutos por uma trilha jazz-ambiente, sublinhando o tom de nostalgia, mas também determinando uma atmosfera burguesa, confortável, para personagens que se preocupam apenas com os próprios embates sentimentais, mas nunca com o dinheiro, a família, o resto da sociedade. O triângulo amoroso deste filme vive para si, seus desejos e satisfações. Encontro o ex-amante? Trag-o para os Estados Unidos? E se eu me apaixonar de novo? O que meu marido vai pensar?
Caso as dúvidas não estejam claras, elas são pontuadas pela trilha sonora onipresente, determinando certo maravilhamento e construindo um teor lânguido, vaporoso. A textura em película, e a fotografia que valoriza as cores quentes, mas nunca ilumina demais os cômodos, reforçam a impressão de um caso tão singelo quanto ensimesmado, egocêntrico. O drama se mostra educado, polido, profissional, onde tudo se encontra no lugar que deveria. O clímax chega na hora certa, as pequenas felicidades se equilibram com tristezas módicas, e tudo termina bem, numa acepção agridoce do termo.
No entanto, a direção demonstra medo de se sujar, de arriscar, de incluir alguma representação capaz de perturbar os sentidos. A diretora Celine Song segue à risca o manual indie do Festival de Sundance, evitando imprimir uma marca autoral ou se lançar numa visão de mundo particularmente marcante. Nem mesmo a noção de política dos afetos, tão comum em discussões críticas contemporâneas, se aplicaria aqui: a origem coreana de Nora, o pensamento diferente de Hae Sung (Teo Yoo), o ciúme contido e maduro do marido Arthur (John Magaro) se convertem em detalhes perto de uma condição burguesa e confortável, que também sugere a incapacidade de mudar. Nenhum destes elementos representa um conflito com consequências marcantes para a trama.
Neste contexto singelo, as atuações são competentes, ainda que pouco marcantes, por operarem em registro semelhante: a fala para dentro, os olhares, baixos, o pequeno incômodo capaz de provocar humor, a timidez de quem gostaria de dizer “Te amo”, mas não consegue. É impressionante que a diretora Celine Song evite a todo custo construir volumes, texturas, viradas no jogo cênico — os atores começam e terminam da mesma maneira, apesar de 24 anos terem se passado. A protagonista envelhece doze anos, e nenhuma transformação marcante é efetuada no rosto, corpo e roupas da atriz. No fundo, persistem idênticos à pureza de sua infância (não seria esta, no fundo, outra forma de idealização?).
Para quem ainda não tiver estabelecido as conexões necessárias, a montagem resgata cenas do passado para reforçar a proximidade das duas crianças quando moravam na Coreia. Em consequência, Past Lives desperta uma alegria triste, uma impressão de competência segura e desinteressante. O espectador nunca é provocado a pensar, a opinar, a refletir sobre embates morais ou éticos, porque eles inexistem. O público é pego pela mão, conduzido via diálogos explicativos (“O pai dela é diretor, e você é artista”), outros pouco inspirados, junto a flashbacks óbvios e cenas de um romantismo padrão (o cais turístico onde todos os casais se beijam). Em se tratando de uma obra a respeito do encontro de culturas e de gerações, há uma quantidade inesperadamente pequena de fricção.