Vidas Passadas (2022)

Uma pequena chama

título original (ano)
Past Lives (2022)
país
EUA
gênero
Drama, Romance
duração
105 minutos
direção
Celine Song
Elenco
Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Aparentemente, entre os títulos selecionados para o Festival de Berlim, há filmes de amor e filmes de não-amor. A seleção tem se dividido entre obras que lidam ostensivamente com o sentimento amoroso, manifestando uma crença profunda na paixão e nos encontros do destino (She Came To Me, Someday We’ll Tell Each Other Everything) e os projetos cínicos, sobre o fato que não se ama mais hoje em dia, e estamos tomados pelo ódio (Manodrome, The Survival of Kindness). O sentimento amoroso nunca existe enquanto elemento suplementar, mero traço na construção de personagens: ele precisa constituir o conflito central, seja pela presença, seja pela ausência.

Past Lives se encontra no time dos românticos. Na trama, Nora (Greta Lee) é uma mulher que imigrou da Coreia do Sul para o Canadá, e então para os Estados Unidos, onde firmou residência. Ela deixou no país de origem um amor de infância, quando tinha apenas 12 anos. Doze anos mais tarde, reencontra o rapaz na Internet, e trocam mensagens. A chama se reacende, até perceberem que a distância apenas maltratará a ambos. Em seus países, conhecem outras pessoas, apaixonam-se, casam-se. No entanto, o caso jamais será esquecido por completo.

Trata-se de um longa-metragem que acredita no amor, em suas diversas formas, através de um filtro de maturidade. Hollywood sempre associou a profundidade do sentimento à comédia, à infantilização, ao desajuste social — pessoas apaixonadas tropeçam e caem, dizem palavras que não deveriam, negligenciam compromissos por dedicarem tempo demais aos próprios sentimentos. Aqui, em contrapartida, acredita-se na capacidade de amar duas pessoas em simultâneo, de maneiras distintas, incluindo a compreensão dos terceiros a respeito dos afetos passados de seus cônjuges. 

Past Lives desperta uma alegria triste, uma impressão de competência segura e desinteressante. O espectador nunca é provocado a pensar, a opinar, a refletir sobre embates morais ou éticos, porque eles inexistem.

Esqueça, portanto, o amor-espetáculo, transformador, devastador. Este drama prefere as emoções que persistem, ainda que adormecidas em alguns momentos, e vibrantes em outros. O conceito sul-coreano de In-Yun é utilizado para sugerir que todos podem ter se cruzado em vidas passadas, convivido em outros planos de existência. De certa forma, estamos sempre conectados, e afetos jamais morrem, apenas se reconfiguram em novos tempos. Em período de multiversos, podemos falar em multiversos sentimentais, com o acréscimo do filtro indie-chic-blasé que a produtora A24 sabe imprimir tão bem.

A este propósito, muito tem se discutido a respeito da autoria da produtora norte-americana independente. Em poucos anos, ela estabeleceu um estilo próprio, uma forma de fazer cinema de qualidade com baixo orçamento, valorizando novos autores. Está prestes a conquistar o Oscar de melhor filme com Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, e tem a possibilidade de ganhar prêmios de destaque em Berlim. Ainda que trabalhem com dezenas de autores distintos, os produtores garantem uma confecção sofisticada, com aparência de simplicidade, focada nos sentimentos e na psicologia dos personagens — sobretudo, opondo-se às fórmulas de idealização romântica dos estúdios.

Em contrapartida, tamanhas qualidades se equilibram com alguns vícios e tiques, cada vez mais perceptíveis conforme os projetos da marca se multiplicam. Past Lives é pontuado a cada dois minutos por uma trilha jazz-ambiente, sublinhando o tom de nostalgia, mas também determinando uma atmosfera burguesa, confortável, para personagens que se preocupam apenas com os próprios embates sentimentais, mas nunca com o dinheiro, a família, o resto da sociedade. O triângulo amoroso deste filme vive para si, seus desejos e satisfações. Encontro o ex-amante? Trag-o para os Estados Unidos? E se eu me apaixonar de novo? O que meu marido vai pensar? 

Caso as dúvidas não estejam claras, elas são pontuadas pela trilha sonora onipresente, determinando certo maravilhamento e construindo um teor lânguido, vaporoso. A textura em película, e a fotografia que valoriza as cores quentes, mas nunca ilumina demais os cômodos, reforçam a impressão de um caso tão singelo quanto ensimesmado, egocêntrico. O drama se mostra educado, polido, profissional, onde tudo se encontra no lugar que deveria. O clímax chega na hora certa, as pequenas felicidades se equilibram com tristezas módicas, e tudo termina bem, numa acepção agridoce do termo.

No entanto, a direção demonstra medo de se sujar, de arriscar, de incluir alguma representação capaz de perturbar os sentidos. A diretora Celine Song segue à risca o manual indie do Festival de Sundance, evitando imprimir uma marca autoral ou se lançar numa visão de mundo particularmente marcante. Nem mesmo a noção de política dos afetos, tão comum em discussões críticas contemporâneas, se aplicaria aqui: a origem coreana de Nora, o pensamento diferente de Hae Sung (Teo Yoo), o ciúme contido e maduro do marido Arthur (John Magaro) se convertem em detalhes perto de uma condição burguesa e confortável, que também sugere a incapacidade de mudar. Nenhum destes elementos representa um conflito com consequências marcantes para a trama.

Neste contexto singelo, as atuações são competentes, ainda que pouco marcantes, por operarem em registro semelhante: a fala para dentro, os olhares, baixos, o pequeno incômodo capaz de provocar humor, a timidez de quem gostaria de dizer “Te amo”, mas não consegue. É impressionante que a diretora Celine Song evite a todo custo construir volumes, texturas, viradas no jogo cênico — os atores começam e terminam da mesma maneira, apesar de 24 anos terem se passado. A protagonista envelhece doze anos, e nenhuma transformação marcante é efetuada no rosto, corpo e roupas da atriz. No fundo, persistem idênticos à pureza de sua infância (não seria esta, no fundo, outra forma de idealização?).

Para quem ainda não tiver estabelecido as conexões necessárias, a montagem resgata cenas do passado para reforçar a proximidade das duas crianças quando moravam na Coreia. Em consequência, Past Lives desperta uma alegria triste, uma impressão de competência segura e desinteressante. O espectador nunca é provocado a pensar, a opinar, a refletir sobre embates morais ou éticos, porque eles inexistem. O público é pego pela mão, conduzido via diálogos explicativos (“O pai dela é diretor, e você é artista”), outros pouco inspirados, junto a flashbacks óbvios e cenas de um romantismo padrão (o cais turístico onde todos os casais se beijam). Em se tratando de uma obra a respeito do encontro de culturas e de gerações, há uma quantidade inesperadamente pequena de fricção.

Vidas Passadas (2022)
5
Nota 5/10

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