A Sobrevivência da Bondade (2023)

Doce calvário

título original (ano)
The Survival of Kindness (2023)
país
Austrália
gênero
Drama, Fantasia
duração
96 minutos
direçãO
Rolf de Heer
elenco
Mwajemi Hussein, Deepthi Sharma, Darsan Sharma
visto em
23º Festival de Cinema de Berlim

“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum”.

Uma mulher é colocada numa jaula por homens mascarados, e transportada ao meio do deserto. Leva-se muito tempo para o espectador descobrir os motivos desta violência, assim como os autores do crime. A heroína jamais ganha nome, sendo descrita nos letreiros como BlackWoman, e oposição a outros que encontrará pela estrada (BrownGirl, BrownBoy). Ela raramente fala, e quando se expressa, o faz por meio de gemidos, choros, ou palavras numa linguagem indefinida. Não há diálogos neste projeto, nem legendas de qualquer tipo. A escolha se justifica: posto que se encontra sozinha na maior parte do tempo, com quem ela haveria de falar?

O diretor Rolf de Heer insiste em tratar este filme com uma fábula. Em partes, remete a um conto de fadas, uma cautionary tale que se ensinaria às crianças, expondo os perigos do mundo adulto. Por outro lado, corresponde às produções distópicas a respeito de mundos devastados por algum vírus, guerra ou demais ameaças mortais. A mulher precisa sobreviver, mas, como indica o título, resta sobretudo a bondade, ou resta um mundo graças à bondade

Por isso, a morte adquire um tratamento fantasista. A prisioneira resiste pelo menos três dias presa numa jaula no deserto, sem água nem comida, e depois sai caminhando com um sorriso nos lábios. Adiante, após imensas provações, ainda sustenta o olhar plácido, caminhando sem esforço, como se não fugisse de ninguém. Embora encontre diversos cadáveres e esqueletos pelo caminho, e testemunhe uma dezena de execuções, jamais se esconde, nem corre ou revida contra adversários. Ela perambula, invisível, tão estoica quanto esperta na arte da sobrevivência.

O cineasta rejeita a urgência, o suspense, a tensão do filme de sobrevivência. […] Aos poucos, o roteiro desenha um conto a respeito do genocídio de pessoas não-brancas.

Esta curiosa escolha transforma The Survival of Kindness numa obra doce e brutal; gentil e violenta, em simultâneo. Sofre-se, mas também não muito: a mulher é capturada, escravizada e presa com um cadeado de ferro acoplado ao pescoço. Sem hesitação, ela encontra um objeto capaz de serrar, microscopicamente, o objeto que a aprisiona. Então, foge mais uma vez, caminhando tranquilamente pela porta afora. O cineasta rejeita a urgência, o suspense e a tensão típicos do filme de sobrevivência, para introduzir uma espécie de deambulação íntima pela Austrália profunda. A mulher tem como adversário principalmente a si mesma e suas capacidades de resistência. O mundo ao redor a tolera.

Aos poucos, o roteiro desenha um conto a respeito do genocídio de pessoas não-brancas nesta área destituída de leis e instituições. Ninguém possui família, religião, ou integra qualquer grupo organizado. Logo, não possuem nada a perder. Trata-se de figuras destituídas de passado e de futuro, restando apenas o agora. Neste contexto, a gigantesca usina comandada por brancos caça e escraviza os negros, quando não os mata. As atitudes soam contraditórias: estes capangas desejam manter suas vítimas vivas, para fornecerem a força de trabalho, ou mortas, num gesto de ódio irracional? Trata-se de uma guerra, ou da exploração capitalista? Amplo e um tanto vago, o projeto visa ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Em determinados momentos, a doce poesia da morte se sustenta. O cineasta filma em lente macro angular as formigas na terra, e o dedo da personagem retirando a terra de um cadeado. (Quantas vezes você já viu a ínfima parte de uma unha ocupar a tela inteira do cinema?). Ele se atenta à forma do solo rachado, às sombras, e valoriza a atuação de Mwajemi Hussein sem explorar os sentimentos em excesso, apesar da quantidade generosa de close-ups. Para uma narrativa privada de falas, o ritmo se prova cadenciado, equilibrando-se com possibilidades de contemplação. A aventura não se acelera, nem se arrasta.

Em outros instantes, o caminho se perde. A utilização de drones puxa a imagem aos céus sem qualquer justificativa para além de revelar a natureza e a solidão da mulher (ou talvez valorizar as paisagens australianas). Os planos próximos em feridas revelam um trabalho de maquiagem pouco convincente, inclusive para padrões do realismo fantástico. Em especial, algumas sequências precisariam de diálogos para o sentido se completar — caso da exigência de ladrões em recuperar o sapato das pessoas roubadas. No entanto, a exigência autoimposta do silêncio força os atores a emitir grunhidos e apontar excessivamente aos objetos na intenção de indicar o que desejam.

A metáfora do genocídio negro começa a se desenvolver quando entram em cena a maquiagem branca e as lentes de contato coloridas para o disfarce contra os agressores; ou quando um rapaz negro coberto de piche, em processo completo de zumbificação, atravessa um corredor. Felizmente, a protagonista nunca se transforma numa salvadora heroica: diante de anônimos em situação semelhante à sua, ela apenas garante à própria sobrevivência, deixando que os demais fiquem à própria sorte. Em outras palavras, o diretor foge ao perigo de idealizá-la: estando em uma guerra, é compreensível que ela aja em benefício próprio.

Em contrapartida, o desenvolvimento da trama introduz elementos menos convincentes na leitura do racismo. A passagem providencial de um indivíduo que lhe joga um objeto valioso, e acima de tudo, a questionável escolha da cena final devem levar alguns espectadores a questionar a boa vontade desta fábula em relação à protagonista. Algumas pessoas lerão a jornada enquanto uma entrega conformista e condescendente com a matança que pretende condenar — e terão motivos suficientes para tal. O fato de Rolf de Heer ser um homem branco pode reacender debates a respeito do lugar de fala e do ponto de vista do artista australiano-holandês.

Ressalvas à parte, The Survival of Kindness cumpre a tarefa de aludir ao extermínio de um povo através de um cenário de combate simulado, em vertente infantil e mágica. O tom de brincadeira de várias cenas pode irritar quem espera do tema uma abordagem mais séria. Para outros, talvez forneça certo alívio a quem não suportaria imagens explícitas e realistas de agressão. Um ótimo símbolo desta opressão lúdica se encontra na cena inicial, quando um cenário repleto de bonequinhos negros ao chão revela ser, no final, a superfície de um bolo filmada de perto. Os sujeitos mascarados cortam um pedaço e festejam. 

Esta metáfora se prova evidente demais, mas também cruel, gentil, quase divertida (na sala de cinema, as pessoas riam). Restará ao espectador a provocação em relação ao tom: um filme sobre massacres possui o direito de ser gentil, mais psicológico do que social, e mais metafísico do que político? Pode incluir um humor sereno, além de personagens que compreendem o limite de suas jornadas e se oferecem à morte? Em outras palavras, a morte teria o direito de não ser trágica, apresentando-se de maneira inconsequente? Aí reside a principal qualidade ou defeito deste filme — a gosto do espectador. 

A Sobrevivência da Bondade (2023)
6
Nota 6/10

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