Há quem diga que todos os filmes disponíveis possuem a mesma capacidade de atrair o público, e se alguns sofrem com fraca bilheteria, seriam responsáveis por seu próprio fracasso. Segundo esta lógica, proteções legais a certos tipos de obras (nacionais, ou de uma temática específica), no modelo de cotas de tela, seriam dispensáveis, e mesmo injustas. O grande sucesso de histórias de super-heróis decorreria, portanto, da simples preferência do espectador médio por estes filmes. Oferta e procura.
Ora, apesar de recorrente, o argumento meritocrático nunca se sustentou diante da configuração da indústria do cinema. Em primeiro lugar, os filmes partem de condições radicalmente desiguais de distribuição e exibição — fator fundamental para se discutir a suposta meritocracia nas bilheterias. Estima-se que, em Hollywood, as produções dediquem 50% a mais que seus custos de produção em investimento de marketing.
Isso significa que Pantera Negra: Wakanda Para Sempre contaria com aproximadamente US$ 125 milhões em peças publicitárias, inserções na televisão, nas redes sociais, nos pontos de ônibus e no transporte público. Já a recente estreia Armageddon Time, de James Gray, teria cerca de US$ 7,5 milhões para a elaboração de materiais de natureza semelhante. Filmes brasileiros, que disputam atenção com estes títulos estrangeiros no circuito comercial, às vezes não dispõem de verba nenhuma. Se estivéssemos numa corrida, os blockbusters sairiam a poucos metros da linha de chegada. Não se pode falar em uma concorrência igualitária.
Ora, as disparidades se tornam ainda mais flagrantes neste período dito de pós-pandemia (embora os números ainda situem a Covid-19 como uma questão bastante presente). As pessoas retornaram às salas escuras, deixaram de usar máscaras, e os cinemas (aqueles que sobreviveram à paralisação) voltaram a receber o público. Festivais retomaram o formato presencial, e blockbusters americanos estão comemorando as vendas expressivas.
No mercado dos Estados Unidos e Canadá, os últimos cinco finais de semana foram tomados pelos super-heróis. Pantera Negra: Wakanda para Sempre liderou a bilheteria nos últimos dois fins de semana, e antes dele, Adão Negro dominou o circuito por três vezes consecutivas. Até o momento, o filme da DC, estrelado por Dwayne Johnson, acumula US$ 377 milhões internacionalmente para o orçamento estimado de US$ 195 milhões, enquanto o filme da Marvel, que continua a trama africana apesar do falecimento do ator Chadwick Boseman, faturou US$ 678 milhões para os custos de US$ 250 milhões. (A fonte, para estes e demais dados de bilheteria neste artigo, será o Box Office Mojo).
O otimismo decorrente das bilheterias de filmes de super-heróis oculta o abismo que separa as maiores produções, baseadas em marcas e personagens conhecidos, dos filmes originais, independente e “adultos”.
Os números são comparáveis a produções pré-pandêmicas: a estreia de Adão Negro superou o primeiro fim de semana de Shazam! (US$ 67 milhões, contra US$ 53,5 milhões) e de Aquaman (US$ 67,9 milhões), enquanto Pantera Negra: Wakanda para Sempre conquistou a segunda melhor estreia de 2022, com US$ 180 milhões, um pouco atrás dos US$ 187 milhões de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Para além das duas produções de super-herói, Top Gun: Maverick chegou a impressionantes US$ 1,4 bilhão mundialmente, enquanto Jurassic World: Domínio acaba de ultrapassar a marca de US$ 1 bilhão.
No entanto, o otimismo decorrente destes resultados oculta o abismo que separa as maiores produções, baseadas em marcas e personagens conhecidos, dos filmes originais, independente e “adultos” — leia-se: focados no espectador de mais de 25 anos, sem referências aos quadrinhos, nem buscando o público familiar que garantiu os lucros das obras mencionadas acima. Nesta fase de retomada, estes títulos têm sido praticamente ignorados pelo público, por fatores que convém analisar a seguir.
The Fabelmans, autobiografia de Steven Spielberg que tem sido considerada como uma das favoritas à próxima temporada de premiações, acumulou míseros US$ 3,6 milhões em duas semanas, para um orçamento de US$ 40 milhões. Certo, o lançamento ocorreu por enquanto em número restrito de salas (em oposição a uma estreia nacional), porém é difícil pensar que a expansão do circuito possa tornar o drama minimamente rentável. Até os Ossos, drama fantástico com Timothée Chalamet, arrecadou até o momento US$ 6,1 milhões para os custos de US$ 16 milhões — novamente, em circuito reduzido.
O Menu, suspense com Ralph Fiennes e Anya Taylor-Joy, acaba de superar seu valor de produção (US$ 34,4 milhões arrecadados, em circuito nacional, para os custos de US$ 30 milhões). Ingresso para o Paraíso, comédia romântica que reúne Julia Roberts e George Clooney, faturou US$ 65 milhões em seu país, apesar de estar disponível em mais de 3,5 mil cinemas. Ao longo das semanas, precisou dos números internacionais para chegar à marca de US$ 162 milhões. Ela Disse, drama sobre duas jornalistas que desvendaram o caso Harvey Weinstein, sofreu um dos maiores baques do ano: apenas US$ 2,2 milhões na estreia nacional, para um investimento de US$ 32 milhões.
A ideia falsa de que certos títulos intimistas “não precisam ser vistos no cinema” contamina o imaginário popular.
Muitos fatores podem explicar os resultados decepcionantes destas produções. Em primeiro lugar, uma seletividade relacionada à economia: com a pauperização, o público se concentra num número menor de filmes, privilegiando aqueles que prometem espetáculos de sons e efeitos especiais. A ideia falsa de que certos títulos intimistas “não precisam ser vistos no cinema” contamina esse imaginário popular. Acredita-se, por este raciocínio, que o cinema teria como vocação o escapismo, e demais experiências estariam hierarquicamente abaixo desta, como intrusas nas salas de cinema.
A dispersão do espaço de exibição também permite explicar este momento. É difícil saber se um título se encontra nos cinemas (em quais salas?), no streaming (em quais plataformas?), ou mesmo simultaneamente em ambos. Diante da pulverização da experiência cinematográfica, os mastodontes de Hollywood se tornam aqueles títulos que, com certeza, se encontram nas grandes salas. Além disso, eles monopolizam o circuito: no Brasil, desde muito antes da pandemia, tornou-se comum encontrar três ou quatro filmes norte-americanos que ocupem, sozinhos, 90% das salas disponíveis. Os demais títulos que lutem por um lugar ao sol.
Em paralelo, nenhuma destas produções adultas, marcadas por histórias originais, conseguiu criar a atmosfera de um filme-evento, aguardado por meses antes da estreia, do tipo que todos precisam ver para acompanharem as discussões dos colegas e as referências na cultura pop e nas redes sociais. O Star System se encontra falido (nenhum astro ou estrela constitui garantia de bilheteria em Hollywood). Talvez a obra que mais tenha se aproximado disso seja Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, caso raro de sucesso de bilheteria a partir de uma trama nova, com poucos astros no elenco. A comédia de fantasia e ficção científica conseguiu ultrapassar a marca de US$ 100 milhões a partir dos custos estimados em US$ 28,5 milhões.
Trata-se da exceção que confirma a regra, no entanto. A diminuição da janela de exibição (filmes chegam ao streaming pouquíssimo tempo depois do cinema) favorece o sentimento de que não vale a pena gastar o preço alto do ingresso (“Daqui a pouco já está na televisão”). Ao mesmo tempo, os títulos se avolumam, sendo lançados com rara atenção nas plataformas virtuais, dependendo do boca a boca para eventualmente ser descobertos pelo espectador em meio a milhares de títulos semelhantes. Os tradicionais dez lançamentos semanais, em média, multiplicaram-se para trinta ou mais, somando séries, minisséries e outros projetos despejados em todos os canais possíveis. É difícil acompanhar.
Aos poucos, deixa-se de amar o cinema para se consumir filmes, o que consiste em movimentos muito diferentes. O cinéfilo é substituído pelo consumidor.
De certo modo, a sala de cinema perde seu prestígio, resumindo-se, no atual contexto, a um espaço de exibição suplementar — comparável às telas da televisão de casa, do computador, do celular. Aos poucos, deixa-se de amar o cinema para se consumir filmes, o que consiste em movimentos muito diferentes. O cinéfilo é substituído pelo consumidor. Os projetos são devorados e adquiridos como quem compra uma nova capa de celular ou um novo tênis. Já viu Wandinha? Gostou de Pantera Negra? Ótimo, check. Passemos ao próximo produto do momento.
O cinema começa a se desgastar enquanto experiência coletiva, tornando-se progressivamente individual. A ideia de se deslocar à sala escura, comprar pipoca e bebida, e descobrir a obra junto de um grupo de amigos e anônimos, representava o cinema enquanto formação da cinefilia clássica. Este constituía o ato de “ir ao cinema”. Hoje, listam-se os filmes em aplicativos e mencionam-se séries nas redes sociais. “Ainda não terminei O Irlandês, depois quero ver até o fim”, “Vi White Lotus até o terceiro episódio, depois parei”. A espectatorialidade se dispersa, competindo com os celulares, os toques das redes sociais. O filme deixa de ser uma imersão.
Por isso, compreende-se o favorecimento dos filmes-fórmula, baseados em quadrinhos, focados na luta do bem contra o mal, quando, apesar das dificuldades, um herói se impõe e triunfa ao final. Existe um caráter de reconforto na previsibilidade de Marvel e DC, porque não exigem a atenção, ainda que distraiam com imagens competentes, grandiosas, e efeitos sonoros explodindo via Dolby Surround. A reflexão se torna coadjuvante em relação às sensações, e o cinema “familiar”, feito para vender bonecos, mochilas personalizadas e combos de fast food relembra um espetáculo de fogos de artifício na virada de Ano Novo: brilhoso, barulhento, espetacular, no entanto, narrativamente inócuo, previsível, sem deixar marcas duradouras após o final da experiência. Uma forma de audiovisual concebida para ocupar o tempo, nunca para provocar, testar limites, ir contra expectativas.
Qual foi o último blockbuster disruptivo, perturbador, que ousou oferecer rumos inesperados e controversos aos personagens, ou apostou em linguagens pouco usuais? Não! Não Olhe!, com seus US$ 171 milhões nas bilheterias, talvez tenha chegado mais perto desse critério em 2022, mas dificilmente poderia ser considerado um blockbuster, tendo custado US$ 68 milhões. Por enquanto, os dez maiores sucessos deste ano nas bilheterias norte-americanas são, em ordem, Top Gun: Maverick, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, Jurassic World: Domínio, Pantera Negra: Wakanda para Sempre, Minions 2: A Origem de Gru, The Batman, Thor: Amor e Trovão, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, Sonic 2 e Adão Negro. Nenhum filme original.
O cinema “familiar”, feito para vender bonecos, mochilas personalizadas e combos de fast food relembra um espetáculo de fogos de artifício na virada de Ano Novo: brilhoso, barulhento, espetacular, no entanto, narrativamente inócuo e previsível.
O momento também permite entender porque o terror floresce com tamanha força. Tradicionalmente mais barato, buscando um público de nicho, o subgênero tem conseguido os melhores retornos para investimento, tornando-se fundamentais numa indústria destituída de filmes do meio (obras de alcance e custos intermediários entre os blockbusters e os minúsculos filmes “de arte”). Noites Brutais, X: A Marca da Morte, Sorria e O Telefone Preto foram algumas das obras bem-sucedidas neste sentido, onde a invenção e a ousadia apareceram de forma pronunciada em iniciativas que buscam um público amplo. 2022, ano de crise, também foi o ano do terror.
Não há soluções fáceis para este impasse. Caso houvesse, os grandes circuitos exibidores já teriam adotado as medidas cabíveis para demonstrar ao público que apenas a vivência da grande tela, do som excepcional, permitem uma imersão nos filmes e nas qualidades que têm a oferecer. Ora, talvez os tempos não sejam propícios a mergulhos nas profundezas. As redes sociais, as plataformas e os celulares prometem conteúdo em quantidade, no atacado, na velocidade, na superfície. Bom ou ruim, pouco importa: paga-se relativamente pouco, em cada serviço, para milhares de conteúdos disponíveis.
Quanto mais complexos e provocadores, menos os filmes adultos se comunicam com esta tendência à velocidade, ao cinema-lazer, ao cinema-distração. Eles constituem um ato de luta e de resistência, quando se tenta oferecer ao público algo que ele, aparentemente, não deseja mais comprar. É óbvio que sempre restarão cinéfilos, espectadores interessados em dramas intimistas, filmes experimentais e ousados. Entretanto, eles constituem um nicho pequeno dentro da indústria — e filmes de prestígio como The Fabelmans ou Armageddon Time não foram feitos apenas para figurar em listas de melhores do ano.
Acreditava-se que estes e outros títulos pudessem conquistar sucesso de público, assim como faziam Lincoln (US$ 275 milhões nas bilheterias), Dunkirk (US$ 527 milhões), O Regresso (US$ 532 milhões), Bohemian Rhapsody (US$ 910 milhões), Perdido em Marte (US$ 630 milhões) e Garota Exemplar (US$ 369 milhões) poucos anos atrás. No entanto, simplesmente desistir dessas tentativas em prol de novos investimentos em adaptações de quadrinhos significaria um fracasso terrível para o cinema-arte. Então que venham The Fabelmans, Entre Mulheres, Paloma, Carvão, Marte Um e outros filmes comoventes, adultos, que poucas pessoas verão. Serão filmes marcantes na cabeça dos poucos que se deixarem marcar, até que se descubram estratégias para torná-los atraentes ao público médio novamente. Filmes de colecionadores anônimos, quase tão extintos quanto as obras que colecionam. A cinefilia se invisibiliza, mas não desaparece.