Entre Mulheres (2022)

Introdução à sororidade

título original (ano)
Women Talking (2022)
País
EUA
gênero
Drama
duração
104 minutos
direção
Sarah Polley
elenco
Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Judith Ivey, Ben Whishaw, Frances McDormand, Sheila McCarthy, Michelle McLeod
visto em
Festival de Toronto 2022

É fácil gostar de um filme como Entre Mulheres. Imagina-se que possa sair com algum prêmio de público do Festival de Toronto, e depois, faturar troféus importantes na temporada de premiações. Afinal, trata-se de uma obra feita por mulheres, sobre mulheres, nas quais um único homem adulto aparece durante toda a sessão. Discute-se a violência histórica cometida contra as personagens; o peso do cristianismo na manutenção do sistema; a criação das próprias mães com os filhos homens; a melhor maneira de lutar contra o machismo e revolucionar a nossa percepção dos gêneros.

O drama vai além, incluindo, na trama de séculos atrás, um homem transexual e uma agricultora analfabeta ciente de que a masculinidade também pode ser fruto de uma pressão sobre os homens — razão pela qual todos seriam vítimas, em maior ou menor medida. Existem senhoras idosas cientes da necessidade de partir para o combate, e mães valentes questionando a crença de que mulheres sem homens estariam banidas do reino dos céus. Existem, igualmente, crianças politizadas, pré-adolescentes que fumam e assim por diante.

Os letreiros iniciais avisam: o filme consiste num “ato de imaginação feminina”. Por isso, nada de reclamar de desconexão com dados históricos, ou a impossibilidade de um e outro comportamento na “vida real”. Partindo do livro escrito por Miriam Toews, a diretora Sarah Polley prefere imaginar o mundo como poderia ser, ao invés do mundo como foi, e ainda é. Em consequência, o olhar se torna explicitamente progressista e feminista, quando as habitantes detalham, uma à outra, o mundo em que gostariam de viver.

O falatório mencionado no título tem motivo de existir. Cansadas de inúmeros estupros cometidos pelos homens da região, as mulheres se reúnem num galpão e, durante dois dias, deliberam a respeito dos próximos passos a tomar. Deveriam perdoar os vizinhos e familiares abusivos, ficar na colônia e lutar contra eles, ou deixarem o local, juntas? Mesmo sem saber votar, elas aprendem, tomam ata da reunião, imaginam uma lista de vantagens e desvantagens para cada alternativa. Criam, pela necessidade, uma democracia espontânea e improvisada. 

Polley não solicita ao público que efetue um trabalho complexo de reflexão. Pelo contrário: a tese, a antítese e a síntese são oferecidas de maneira generosa e acessível.

Segundo esta perspectiva, a política estrutural seria algo natural, inerente aos povos, ao invés de uma construção histórica repleta de convenções. Quanto mais os personagens sentem a necessidade de representação, mais se juntam e se organizam contra um inimigo em comum. Trata-se de uma visão otimista, ainda que possivelmente ingênua, a respeito da formação das democracias. Ora, uma vez mais, Women Talking constitui matéria de sonho, ao invés de pesquisa histórica. Polley e a escritora gostariam que as mulheres agissem desta maneira, portanto, oferecem aos espectadores e leitores um exemplo a seguir.

No entanto, há um problema em colocar na boca dos personagens exatamente aquilo que a criadora pensa e gostaria de transmitir. Apesar de bem construídas, com personalidades contrastantes, a dúzia de personagens centrais possui um grau impensável de autoconsciência acerca de sua condição de oprimidas. Pode-se falar em mulheres de séculos atrás com a elaboração política e histórica de feministas do século XXI, bem esclarecidas, cientes tanto de suas falhas e contradições quanto daquilo que lhes falta para serem efetivamente livres. 

Polley não solicita ao público que efetue um trabalho complexo de reflexão, ou de oposição entre formas de pensar. Pelo contrário: a tese, a antítese e a síntese são oferecidas de maneira generosa e acessível, ao longo de 104 minutos, para garantir que todo espectador possa seguir o ensinamento. Menos do que mulheres específicas, dotadas de sonhos particulares para o futuro, elas constituem exemplos de caso contrastantes, acessórios ao roteiro: existe aquela que deseja lutar contra seus agressores a qualquer preço (Claire Foy), a vítima de um marido abusivo (Jessie Buckley), a jovem grávida de tendência conciliadora (Rooney Mara), a senhora conservadora e temente a Deus (Frances McDormand) e assim por diante. 

Logo, estas figuras representam peças dentro de uma estrutura teatral, no sentido de movida pelos diálogos, e pela disposição de todas as peças em cena, em simultâneo. Polley evita explorar o interior das casas, limitando a ampla paisagem campestre a pano de fundo para ressaltar a solidão e isolamento das heroínas. De resto, permanecem no interior do galpão, sob uma luz escurecida, quando a saturação diminui e as mulheres se tingem de uma cor próxima do preto e branco. A ausência de cores também contribui a torná-las mais próximas, parecidas, como se fossem uma massa que se comunica em uníssono, apesar das divergências internas.

As atrizes são competentes, e abraçam as características particulares de suas personagens (o aspecto sonhador de Rooney Mara, a raiva prestes a explodir de Jessie Buckley, o aspecto materno e conciliador de Judith Ivey). Cada uma ganha a oportunidade de brilhar individualmente. No entanto, posto que representam vozes e ideias, em oposição a temperamentos e construções psicológicas complexas, não ganham a oportunidade de se desenvolverem ao longo da trama. As atrizes desempenham funções (e o fazem muito bem), ao invés de um trabalho de composição no sentido tradicional do termo.

Além disso, o longa-metragem possui o mérito de equilibrar a verborragia com instantes de respiro e contemplação. Após debates acalorados do conselho, entram em cena os momentos de carinho, além dos instantes pontuais de humor ou ironia para atenuar o tom grave das reflexões. Ainda que a montanha-russa emocional seja equilibrada entre ataques e respiros pós-briga (há mais de uma crise de pânico durante a trajetória), a cineasta encontra uma maneira de articular a seriedade com um pouco de leveza, e sobretudo, com a ideia da comunidade e do apoio entre mulheres. Ainda que discordem e briguem, no final, acatam a decisão da maioria e agem como uma só. 

Women Talking possui a aparência de um projeto capaz de agradar plateias amplas, tanto pelas boas intenções e pela visão generosa de mundo quanto pela simplicidade na maneira de transmiti-lo. Há vantagens e desvantagens neste procedimento: a possibilidade de discutir feminismo com todos os públicos, por um lado, e a incapacidade de se aprofundar no debate ou permitir contradições, por outro. Através da galeria premiada de atrizes — dentro das quais a produtora Frances McDormand possui um papel pequeno, ainda que relevante —, consegue chamar atenção a um texto que, sem tamanho star power, talvez jamais alcançasse o público que esta obra pode conquistar.

Assim, celebra-se o feminismo através de uma espécie de releitura histórica que trata o espectador de maneira passiva, sem convidá-lo de fato a participar da discussão (observamos a querela de fora, sem o convite para tomar partido de um ou outro). Para o bem ou para o mal, Polley estima que seu público-alvo não possui as bases simples do questionamento a respeito da origem dos preconceitos de gênero, precisando da introdução carinhosa de uma professora gentil. Espectador esclarecido e questionador a respeito da opressão feminina, este filme não é feito para você. Em sua marcha tão corajosa e abrangente quanto idealista, a diretora pretende sensibilizar aqueles que jamais pararam para questionar a ordem “natural” das coisas.  

Entre Mulheres (2022)
6
Nota 6/10

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