Mika (Milena Gerassi) é uma pré-adolescente trans. Ela se descreve no pronome feminino e veste as roupas da irmã mais velha. No entanto, para os pais dela, trata-se de um menino que precisa ser corrigido para não se tornar feminino demais. Reclamam do cabelo, das roupas, das amizades. Por “medo da violência dos outros”, acabam sendo ainda mais violentos no espaço doméstico, onde a menina deveria encontrar alguma forma de proteção. Trata-se de um comportamento comum aos pais de crianças LGBTQIA+, diga-se de passagem — maltratam-na por medo que seja maltratada.
No entanto, Mika não constitui a protagonista de Avenida Beira-Mar. Nossa personagem principal é Rebeca (Milena Pinheiro), garota que acaba de se mudar para perto da praia, quando conhece a colega trans. De imediato, os diretores Maju de Paiva e Bernardo Florim adotam uma estratégia clássica para ficções acerca da alteridade: colocam o espectador na posição de um terceiro, que não representa a minoria em questão, porém manifesta a empatia para com o diferente. Rebeca é negra, tímida, tem poucos amigos. Logo, a aproximação entre ambas se torna uma estratégia de sobrevivência social.
Deste modo, os criadores estimam que seria mais fácil ao público nutrir interesse por Mika. Pode-se falar em uma forma de cinema clássico, defendendo a inclusão e o afeto ao visar o público cis-hétero, ao invés de eventuais pessoas trans. Solicita ao espectador que seja gentil, compreensivo, e se coloque no lugar do outro. Trata-se de uma iniciativa LGBTQIA+ que ainda deixa o protagonismo nas mãos da menina cisgênero, reservando a Mika um olhar em terceira pessoa.
Uma obra bela, bastante polida, ainda que um tanto antiquada para a sociedade e as demandas de 2024. Ele parece corresponder aos sentimentos de uma época anterior.
Mesmo assim, realiza de maneira bastante satisfatória a sua proposta de conciliação. As duas jovens atrizes estão confortáveis nos papéis, fruto de um trabalho competente de direção de atores. Andréa Beltrão, como mãe de Rebeca, provoca alguns dos melhores momentos do filme — vide a cena em que desculpa a atitude de outra adulta desesperada, procurando pela filha desaparecida. Beltrão atribui ternura sem condescendência, fugindo aos principais clichês do heroísmo ou do salvacionismo cis. Ela ajuda na medida que lhe cabe, sem mais, nem menos. Tampouco representa a figura materna mais acolhedora e militante do mundo.
O longa-metragem possui outros belos acertos. Em primeiro lugar, evita converter Mika numa vítima piedosa do sistema. A garota é assertiva, sabe se impor, e encontra certa rebeldia contra a sociedade no prazer em invadir casas alheias — apenas para brincar e observar, como se demonstrasse controle sobre aqueles que a controlam normalmente. Paiva e Florim também evitam a armadilha transfóbica de masculinizar sua atriz para indicar a transexualidade (lembra da época em que a prótese masculina no queixo foi considerada aceitável, em A Glória e a Graça?). Segundo o olhar da câmera, Mika é apenas uma menina. Questões de biologia são menos importantes do que a autopercepção da garota.
Além disso, Avenida Beira-Mar rompe com o pressuposto do homem agressivo — na casa da menina trans, a mãe corresponde à figura mais agressiva, enquanto o pai prefere fechar os olhos à identidade de gênero da filha. No caso de Rebeca, foge-se à equivalência tão comum quanto falha entre o preconceito de gênero e o preconceito racial — existem indícios mínimos de racismo contra a menina, meramente pincelados pelo roteiro. Os autores sabem onde está seu foco, e evitam transformar a narrativa num caldeirão de mazelas e denúncias. Esta simplicidade também representa uma das qualidades da obra, avessa à tentação de abraçar mais temas do que consiga desenvolver.
Mesmo assim, algumas escolhas careceriam de atenção e aprofundamento. Acena-se algumas vezes a uma doença grave da mãe, apenas para abandonar este importante conflito adiante. O roteiro não precisaria resolvê-lo, apenas deixar pistas do que poderia ocorrer a seguir — um tratamento? Em casa, no hospital? O texto menciona a solidão de Rebeca na escola, além da perseguição a Mika, de modo que teria sido fundamental acompanhar a rotina de ambas no colégio. Talvez por limitações de produção, o este espaço é retirado das imagens. Familiares que fugiram ou abandonaram o lar serão igualmente esquecidos a seguir.
O drama também possui certas cenas desajeitadas na maneira de filmar e editar. A bolada seguida por um abuso sexual na praia soa veloz, brusca, mal resolvida pela montagem, e sem tempo para acompanhar os sentimentos da vítima. A cena de um batom passado em frente aos pais, sem que estes o percebam, resulta igualmente improvável. Mesmo o enfrentamento com o canivete se resolve com menos planos do que parecia necessitar. Até a conclusão, aberta demais, nem resolve, nem indica possíveis caminhos à trama. Prefere suspendê-la. Desperta a impressão que faltavam uma ou duas cenas (mesmo que abertas) para encerrar a jornada a contento.
Naquele final repentino e ríspido, os autores transparecem a dificuldade de estabelecer o ponto de vista: no desfecho, não nos posicionamos nem com Mika, nem com Rebeca, nem com a mãe, mas à distância das três, sem saber ao certo o que sentem. O drama se sobressai nas interações cotidianas, nos instantes de respiro e pausa (as brigas com a mãe sobre a roupa manchada na máquina; a conversa a partir de um álbum familiar encontrado). No entanto, enfraquece sempre que precisa executar algum conflito transformador, acelerando a violência antes de explorar a contento as suas circunstâncias.
Resta uma obra bela, bastante polida, ainda que um tanto antiquada para a sociedade e as demandas de 2024. Ele parece corresponder aos sentimentos de uma época anterior — na trama, não há celulares nem computadores. No entanto, falta a este cinema de pretensões queer uma fagulha de ousadia estética, de subversão da linguagem. Esperava-se que os sentimentos da menina agredida pudessem resultar em alguma metáfora, poesia, signo, capazes de canalizar tal furor. Ora, os autores preferem seguir um caminho linear, clássico-narrativo, avesso a uma tomada de riscos propriamente dita. Minimizam tanto as dores quanto as alegrias da amizade, oferecendo um projeto correto e seguro — até demais, aliás.