Deuses da Peste (2025)

Cinema pós-traumático

título original (ano)
Deuses da Peste (2025)
país
Brasil
linguagem
Experimental
duração
130 minutos
direção
Gabriela Luíza, Tiago Mata Machado
elenco
Carolina Castanho, Leandro Machado, Paulo Goya, Renan Rovida, Helena Ignez, Alexandre de Sena, Allyson Amaral
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Posto que a arte sempre responde aos acontecimentos e agenciamentos sociais, era de se esperar que os filmes realizados pós-Covid 19, após a presidência de Jair Bolsonaro, refletissem sobre este período sombrio da nossa história. O jornalismo tem reagido à sua maneira, assim como as ciências sociais. Mas de que forma o cinema poderia representar os horrores das mortes, da desinformação, da campanha de ódio e da ascensão da extrema-direita no Brasil? De que maneira poderia questionar um passado tão recente?

Num primeiro momento, surgiu uma leva de filmes-denúncia, relembrando exatamente o que aconteceu, apontando dedos, gritando a-quem-interessar-possa que abusos e crimes foram cometidos no país. Apocalipse nos Trópicos, Toda Noite Estarei Lá e Excelentíssimos são algumas destas iniciativas curiosas, ao relembrarem o espectador de fatos que ele dificilmente esqueceu. Parecem se comunicar com um público futuro, visando servir de material para estudiosos e curiosos das próximas gerações. Procuram participar da disputa de narrativas, embora, em termos de diálogo num mundo polarizado, provavelmente se limitem a fornecer ao público de esquerda (propenso a assistir a um documentário brasileiro) algo que ele já conhece muito bem.

Agora, numa segunda fase, chega uma onda mais interessante, pois menos explícita e referencial. Trata-se de cineastas experientes, que procuram representar a crise civilizatória no Brasil, ao invés de contá-la ou rememorá-la. Curiosamente, apelam para o teatro farsesco, cômico, clownesco, por compreenderem que o distanciamento via humor ou fantasia seria necessário para ilustrar tamanha fuga das “quatro linhas da constituição”. Para um mundo desregulado, uma estética desregulada — excessiva, grotesca, barroca, kitsch. O naturalismo não comporta a situação que vivemos.

De que forma o cinema poderia representar os horrores das mortes, da desinformação, da campanha de ódio e da ascensão da extrema-direita no Brasil?

A Fúria, de Ruy Guerra; Brazyl, uma Ópera Tragicrônica, de José Walter Lima; e O Clube das Mulheres de Negócios, de Anna Muylaert, buscam, cada um à sua maneira, ironizar nossa frágil democracia. Para isso, utilizam personagens exagerados, bufões, circulando por cenários surrealistas, claramente artificiais, enquanto reproduzem alguns dos disparates escutados pelo último presidente e sua equipe, enquanto atravessávamos uma emergência sanitária inédita. Gritam uns com os outros, empurram-se, ameaçam-se, riem demais, expõem sua nudez (já que o corpo constitui o campo de batalha central da política contemporânea). Trata-se de uma estética do confronto.

Deuses da Peste se insere neste último grupo. Voltando às raízes do teatro clássico, divide-se em três atos nos quais diferentes referências servem a responder às agressões de que fomos vítimas. Por isso, compreende-se tamanha virulência: não é possível, em se tratando de acontecimentos dos últimos quatro ou cinco anos, abordá-los com o distanciamento blasé de um historiador investigando a sociedade de séculos atrás. Assim, os personagens levam para um beco e para outros cenários corriqueiros a luz tipicamente teatral; e os figurinos de uma peça clássica ajudam a contrapor ordem e desordem nos rumos institucionais.

O Ato I constitui o mais potente do filme, ao buscar nos textos de William Shakespeare uma comparação direta das lutas brasileiras por poder. Os tronos aludem aos nossos poderes, ao passo que os reis se convertem em ministros, deputados e senadores. Enquanto isso, frases desesperançosas nos trazem constantemente à atualidade: “Esse país acabou, e não há tempo para reconstruí-lo”, “Nas ruas, uma verdadeira orgia de incitação ao ódio”. A frase “Vai piorar” se converte em mantra, conforme se define a organização social dos anos de pandemia como “grande circo do horror”

Os atores se entregam às interações ora farsescas, ora próximas do documental (os ensaios para a peça). Transitam entre a performance e a caricatura do clássico; entre um jogo afetuoso (o rapaz com deficiência, observando calmamente o rei nu) e provocações cínicas (o professor ensinando, em voz off, que apenas a história da Europa importa de fato, e que Jesus nasceu em Israel). O projeto da Escola Sem Partido se concretiza nesta deturpação da realidade — segundo o pensamento da extrema-direita, devidamente parodiado neste segmento, é preciso que os fatos se ajustem às nossas crenças, mesmo que seja preciso negar a realidade para tal.

Infelizmente, o Ato II prejudica a empreitada. Os diretores Gabriela Luíza e Tiago Mata Machado oferecem um discurso explícito, referencial, e mesmo um tanto óbvio, ao citarem diretamente Lula e Bolsonaro, além das expressões e frases icônicas de que ninguém teria se esquecido de fato. “Homem veste azul, mulher veste rosa”, “Apito pra cachorro”, “Tá chovendo fake news”. Vestidos de bolsonaristas, os personagens começam a insultar a câmera — e, por extensão, o espectador, presumido progressista: “Vai comer pão com mortadela!”, “Vai mamar nas tetas do governo!”

A representação se reduz ao mínimo grau de fantasia. Torna-se tão direta que não mais solicita nossa atenção, nem esforço de significação das imagens. Neste terço central, Deuses da Peste se aproxima do primeiro movimento de cinema pós-traumático apontado no texto, limitando-se aos exemplos extremos de cada episódio histórico, tentando apresentá-los enquanto média dos acontecimentos. Este tipo de mecanismo impede pensar como surgiram tais fenômenos, de que maneira mudaram, e por quais vias. Solicitam apenas nossa indignação — ou seja, apelam aos sentimentos mais epidérmicos, ao invés da reflexão.

O roteiro se recupera na parte final, diminuindo o peso da colagem imediatista de “piores momentos” do Brasil vigente. Sobretudo, o resultado se destaca pelo pensamento cinematográfico claro, muito bem delimitado em termos de luz e enquadramento, de ritmo e montagem. Os focos direcionais do refletor ajudam bastante a associar os universos cinematográfico e teatral; enquanto algumas cenas lembram quadros renascentistas — algo louvável em uma obra independente, realizada “sem financiamento público”, conforme os letreiros iniciais insistem em avisar.

As inúmeras intervenções em pós-produção se mostram benéficas à obra, quando canhões artificiais de luz sobre o rosto do rei sugerem um caráter hipnótico por meio da vertigem musical. O excelente Paulo Goya entrega-se tanto às partes mais “sérias” quanto àquelas exageradas com igual desenvoltura, enquanto os demais oferecem um corpo presente, que precisa reagir aos estímulos da direção, ao invés de comporem personagens convencionais, do zero. Atores como Renan Rovida e Carolina Castanho, de corpos maleáveis e forte expressividade, encaixam-se à perfeição nesta linguagem.

Talvez se chegue à conclusão, nos próximos anos, que o teatro da galhofa ainda não representa a maneira mais contundente de expressar nossa História. Faz parte: vamos tateando o terreno, ganhando a distância necessária, reagindo às correntes e procedimentos anteriores. Resta a impressão de que, quanto mais estes filmes se prendem às frases e personagens explícitos da crise brasileira (Deuses da Peste cita até o General Heleno), menos se libertam dos fatos para ilustrar o que significaram. Esperemos pelas iniciativas que seguem. 

Deuses da Peste (2025)
7
Nota 7/10

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