Pele Fina (2022)

A performance contra a ficção

título original (ano)
Pele Fina (2022)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
60 minutos
direção
Arthur Lins
elenco
Ingrid Trigueiro, Tavinho Teixeira, Mariah Benaglia
visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Cinema

Há muitas vontades distintas no interior de Pele Fina. Os criadores partem da obra de Sarah Kane, dramaturga inglesa que cometeu suicídio aos 28 anos, inserindo-a num contexto contemporâneo. Eles também desejam aproveitar o potencial da performance antinaturalista, elaborando uma entrega cênica condizente com o texto fortíssimo da escritora. Outro movimento consiste no desejo de propor uma ficção nova e metalinguística, a respeito de uma atriz preparando-se para encenar Psicose 4:48.

Estas vertentes se cruzam no interior de um projeto de apenas 60 minutos de duração. Durante uma hora de experiência, espera-se que as simbologias de um cinema poético se concretizem, enquanto a protagonista, Luísa (Ingrid Trigueiro), se torna progressivamente afetada pela peça que desgasta sua saúde mental. Procura-se que o espectador compreenda a relação com o ex-marido, com o filho de outro casamento, com a filha pequena, com seu corpo, sua nudez, seus desejos, sua profissão.

Alguns elementos resultam melhores do que outro. Nos instantes em que o longa-metragem representa Sarah Kane através de mecanismos lúdicos, ele tece uma conversa frutífera com a obra original. A introdução, apoiada em fragmentos de outros filmes, cria uma representação perturbadora da mulher, e estimulante para a discussão sobre a intimidade feminina. Os mergulhos no mar, nua, talvez não constituam as metáforas mais inovadoras que o cinema possa oferecer para a entrega e a libertação, no entanto, funcionam bem neste contexto.

A proximidade com o cinema de horror também gera sequências bem-sucedidas. A banda sonora multiplica as vozes sussurradas, discretas, que levam a heroína e o espectador se questionar quanto ao que realmente está ouvindo — somos levados a indagar nossa percepção dos sentidos que, em última instância, determina nossa visão de mundo. A sequência literalmente conectada à pele, com muito sangue/vinho cobrindo o rosto, interessa por revelar o artifício e sugerir a possibilidade de renovação, ou da troca de pele análoga a uma serpente. Novamente, seria difícil apontar criatividade na analogia, embora Trigueiro a sustente com confiança.

Algumas cenas soam confusas em conceito e propósito, entregues como presentes para os atores brincarem.

Outras escolhas, em contrapartida, se mostram problemáticas. Quanto mais o filme investe na ficção roteirizada, menos verossímil soa. As conversas ao telefone, com a filha pré-adolescente ou com o marido na varanda de casa ocorrem através de uma entonação empostada demais, como se os atores estivessem num palco teatral. Eles aparentam atuar para aquele espectador lá na última fileira da casa de espetáculos. Isso se opõe às potencialidades do dispositivo cinematográfico, para o qual pequenas falas e entonações seriam perfeitamente captadas pela imagem e pelo som.

É evidente que o diretor Arthur Lins brinca com o encontro entre os dois mundos e abraça a artificialidade. Na cena com Tavinho Teixeira, uma conversa banal evolui para o texto antinatural ao extremo. A passagem de um estilo ao outro poderia interessar enquanto exercício de gênero, ou provocação cênica. No entanto, a estranheza se insere abruptamente. É uma pena testemunhar dois grandes atores numa prestação abaixo daquilo que sabemos que podem oferecer.

Por isso, as brigas com o filho jovem e as conversas com a pré-adolescente se tornam inócuas dramaticamente, por não se assumirem nem enquanto realismo, nem como fabulação evidente. A longa tirada “Cadê a minha roupa?” desperta a impressão de um improviso cênico sem controle do elenco, do texto e nem da montagem. A situação se repete sem se desenvolver, desgastando-se conforme se estende. O mesmo vale para a bravata “Vá se foder por me fazer sangrar amor e vida”

Algumas cenas soam confusas em conceito e propósito, entregues como presentes para os atores brincarem. Em diversos casos, resta a impressão de se testemunhar uma pesquisa de elenco, ou pesquisas cênicas para uma peça futura. Falta polimento e coerência para este material se encaminhar a um discurso coeso, tanto sobre o cinema quanto sobre a natureza humana. Diversas formas de linguagem são aproximadas de maneira contraproducente, prejudicando-se ao invés de se enriquecerem. 

Em especial, é difícil acreditar que Luísa seja impactada pela peça a ponto de se descontrolar com familiares e com o filho. O trabalho de gradação carece de tempo: precisaríamos de mais cenas para conhecermos a atriz, sua relação com o garoto, o passado conflituoso com o ex-marido. A narrativa se ressente de indícios de uma transformação microscópica: de repente, a heroína está gritando com os outros, exigindo que saiam de sua casa. Afinal, a convulsão é verdadeira, é falsa? Isso importa?

Pele Fina coincide a liberdade com o direito de ser incoerente, disperso, fragmentado. No quesito de direitos, não resta dúvida de que os criadores podem fazer como bem entendem. No que diz respeito à produção de significados, e à experiência para o espectador, as escolhas enfrentam maior dificuldade em se justificar. Às vezes, o resultado aparenta satisfazer aos artistas e ao elenco, em detrimento do público. Soam como uma obra feita para Sarah Kane, para os criadores testarem seus próprios limites e canalizarem seus desejos. Um drama elaborado apesar de nós, ao invés de para nós.

Pele Fina (2022)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.