Casa Vazia (2021)

O homem sem qualidades

título original (ano)
Casa Vazia (2021)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
88 minutos
direção
Giovani Borba
Elenco
Hugo Nogueira
visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba

Raúl (Hugo Nogueira) é um protagonista opaco. Ele trabalha com alguma frequência nas fazendas da região onde mora, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. No entanto, desempenha as tarefas sem vigor. Quando volta para casa e descobre que a esposa partiu, levando as duas crianças, sustenta a expressão inalterada. Se ele sente alguma saudade ou remorso, não aparenta. De qualquer modo, jamais efetua o mínimo esforço para reconquistá-la.

Talvez o maior interesse do herói se encontrasse no roubo de gado, que efetua ocasionalmente, durante a madrugada. Afinal, a atividade motiva diversas execuções por parte de jagunços e representa um risco evidente aos ladrões. Mesmo assim, ele participa por ordens de terceiros, e permanece calado o tempo inteiro. A iniciativa jamais parte deste homem taciturno, desinteressado, que aparenta viver dia após dia pela simples inércia do ato. Raúl não possui ambições para o futuro, desejos sexuais ou de consumos, ou ainda gostos, prazeres, desafetos. Ele apenas existe naquele espaço.

É curiosa a escolha do diretor Giovani Borba ao colocá-lo no centro da trama e, mais do que isso, acompanhá-lo cena após cena, sem desgrudar um instante sequer do corpo deste homem. A câmera o perscruta, em busca de algum furor jamais encontrado ao longo da projeção. Casa Vazia mantém a aparência de um filme minimalista e etéreo. Embora eventuais tiros de espingarda afetem o ambiente, eles surtem efeito nulo no peão plácido. O mundo ao redor o impulsiona a agir (um lado insiste em ter sua ajuda nos roubos, e o outro, solicita seu reforço para a vigilância das fazendas), mas ele resiste em sua insistência hercúlea de fazer, bom… quase nada. 

Compreende-se que a direção enxergue a beleza do silêncio, dos planos cotidianos, da espera. Muitos clássicos do cinema foram construídos a partir da dilatação temporal. No entanto, as pausas dos protagonistas, nestes casos, eram preenchidas com tensão, desejos impossíveis, impasses insolúveis. Uma mulher em silêncio enquanto espera a volta do seu amado possuiria uma carga dramática, assim como o sujeito esperando uma ligação telefônica com notícias importantes da família. Na produção gaúcha, em contrapartida, este peso extraquadro desaparece. Nogueira entra vazio em cena.

Adota-se uma estética rígida, de composições fixas e cuidadosamente centralizadas. […] Há pouco respiro ou poesia numa obra tão seca.

Enquanto isso, adota-se uma estética rígida, de composições fixas e cuidadosamente centralizadas. O scope ora posiciona os rostos no meio do enquadramento, ora efetua zooms microscópicos em direção ao herói. Nas poucas cenas de perseguição, a imagem treme e corre junto aos capangas. É preciso sempre fazer muito, chamar atenção a si: a imobilidade precisa se traduzir no tédio exagerado (o homem dorme na mesa, no gramado), ou em chave oposta, em movimentação excessiva. 

Curiosamente, há pouco respiro ou poesia numa obra tão seca. Símbolos poderiam ajudar a atribuir relevo emocional à narrativa, representando uma complexidade psicológica ausente destes corpos estáticos. Ora, o roteiro segue dia após dia, em ações muito concretas (ir ao rodeio, visitar um velório, pegar pedaços de carne), evitando qualquer grão de loucura, excesso ou risco. Trata-se de uma forma de cinema tão polida e elegante quanto austera.

É difícil pensar que qualquer espectador possa se identificar em profundidade com o sujeito hermético, assim como as situações por ele, posto que são desconectadas de motivações universais, ou de uma análise pormenorizada da virilidade e da violência no meio campestre gaúcho. Existe um caráter admirável nas baixas luzes à noite, no controle desta câmera, na maneira de absorver as paisagens e trabalhar ambientações. No entanto, o envolvimento permanece num nível intelectual: oferece-se pouco a sentir ao interlocutor.

Por este motivo, chegado o clímax, duas ações abruptas possuem uma aparência inverossímil. Como poderiam vir daquele personagem, em tais circunstâncias? Nada prepara a narrativa para isso. A guinada certamente resolve muitos dilemas desta da jornada, porém soam como um deus ex machina, ou seja, uma intervenção externa e impertinente, cuja função seria somente de concluir uma trama que não teria qualquer motivo orgânico para se encerrar ali. O contraste do protagonista inexperiente com tantos coadjuvantes profissionais tampouco imprime uma textura particular nas cenas dramáticas: há pouco em jogo com que brincar, em termos de tons ou intenções.

Resta a impressão de que havia um filme muito potente dentro de Casa Vazia. Ele se encontra numa hombridade manipuladora, nos abraços velados, e na camaradagem entre sujeitos propensos a atirar um no outro na cena seguinte. No entanto, a tendência castradora se impõe: em oposição aos rumos de um cinema clássico-narrativo, as cenas se estendem demais, as ambiguidades se perdem nos planos abertos e na montagem sem tensão nem atrito. 

Caso se concentrasse nas origens deste homem, explorando sua relação com a esposa e os filhos, e com o valor que a fazenda (e a aprovação dos outros rapazes) representa para ele, teríamos um projeto distinto. Ironicamente, para um drama tão dilatado e lento, Borba se exercita na chave do cinema de ação, no sentido estrito do termo: o espectador acessa apenas as informações exteriorizadas nos corpos, e traduzidas em movimentos ou gestos. A psicologia permanece ausente.

Casa Vazia (2021)
5
Nota 5/10

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