Mammalia (2023)

Macho trágico

título original (ano)
Mammalia (2023)
país
Romênia, Polônia, Alemanha
Gênero
Drama, Suspense, Experimental
duração
88 minutos
direção
Sebastian Mihăilescu
elenco
István Téglás, Mălina Manovici, Denisa Nicolae, Steliana Bălăcianu, Rolando Matsangos, Mirela Crețan
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

A vida não anda nada fácil para Camil (István Téglás). O homem percebe que sua querida Andreea demonstra pouco interesse nele ultimamente, preferindo a companhia das amigas de um culto estranho. Certo dia, a mulher não volta para casa, o que obriga o herói a partir em seu resgate. No entanto, engana-se quem espera um homem forte e viril, recuperando a mocinha das mãos de lunáticos. Pelo contrário, ele será desprezado, humilhado, agredido e repudiado, cena após cena. Aqui, as mocinhas estão muito bem, obrigado, enquanto a derrota ocorre do lado dos supostos salvadores.

O diretor Sebastian Mihăilescu constrói uma série de esquetes na qual a masculinidade é ridicularizada através da figura do protagonista. No trabalho, ele é rechaçado pela chefe mulher. Na banheira, a imagem filma uma ereção aparecendo de modo quase engraçado, meio infantil, com a glande emergindo sozinha em meio à camada de espuma. Quando começa sua investigação, descobre que a esposa está beijando outra mulher. Na única vez em que dois homens conversam entre si, a história diz respeito a um sujeito traído, cuja tentativa de recuperar a mulher termina em fracasso.

Mammalia desenvolve um estranho culto na floresta, controlado apenas por mulheres. O funcionamento do grupo jamais será explicado em detalhes: elas proferem frases vagas acerca da negação do real em prol de “um mundo mágico [que] nos espera”. Vestem-se de branco e convivem juntas, no entanto, apesar do beijo, nenhuma interação sexual mais íntima será vista. As participantes esculpem pênis em madeira para, ao que parece, utilizá-los num ritual onde o objeto é descartado com deboche e humor. O autor desenha a alusão a um culto sáfico, deixando, no entanto, várias pistas abertas à interpretação.

O mistério favorece tanto a aproximação com o cinema de horror quanto com o cinema fantástico. Na junção entre a seriedade e o cômico, entre a elegância e o grotesco, residem possibilidades bem exploradas pela linguagem de gêneros. A sinopse citada, sobre a busca do homem pela esposa, pode sugerir uma narrativa muito mais linear do que realmente é. Ora, o cineasta privilegia a sucessão elíptica e dispersa de cenas que poderiam ser agenciadas em qualquer outra ordem, sem real prejuízo ao significado. 

O conjunto sustenta a aparência de sonho (ou pesadelo) onde a masculinidade se vê presa a um purgatório cíclico de provações, condenada ao fracasso.

Elas reforçam uma jornada infinita e em vão, na qual o macho destronado luta, de maneira patética, para resgatar a autoridade perdida. Ao contrário da nudez feminina apropriada pelo corpo masculino, aqui o pênis flácido é utilizado como jogo pelas participantes do culto, que jamais demonstram o mínimo interesse sexual no rapaz. Ele insiste nesta aventura que pode demorar poucos dias ou semanas, não se sabe. Camil entra em cena gritando, recebe sucessivos gritos, tapas, cuspidas, empurrões na água (às vezes, em longos planos-sequência para indicar que o ator realmente passou por tais provações). 

O conjunto sustenta a aparência de sonho (ou pesadelo) onde a masculinidade se vê presa a um purgatório cíclico de provações, condenada ao fracasso. Esse Sísifo tragicômico tentará se inserir no grupo poderoso através do disfarce (a peruca), do uso da força, da espionagem. Nenhum amigo, familiar ou laço próximo o ajuda: ele se encontra totalmente solitário. Os grandes planos com personagens minúsculos diante da paisagem sugerem a pequenez do indivíduo em relação ao meio: sugere-se de antemão que os esforços surtirão efeito nulo.

Mammalia encontra seus melhores momentos no que diz respeito ao uso de enquadramentos, luzes e profundidade de campo. Mihăilescu demonstra um prazer quase juvenil em brincar com as composições fixas, nas quais ocorrem duas, três, quatro atividades simultâneas. Em um momento, o marido está sentado numa primeira camada, a esposa chega em casa no corredor, ao fundo, e ainda mais distante, veremos a sombra dela tomando banho. Adiante, o sujeito escuta uma conversa secreta atrás da árvore, próximo à câmera. Num segundo plano, duas mulheres conversam, num dos longos monólogos do roteiro. Mais ao fundo, uma cúmplice de Andreea corre mata dentro.

Os olhos sempre têm muito a perscrutar, de um lado para o outro, enquanto os sentidos se redefinem graças às sugestões de ações e sons extraquadro. O autor fornece tempo ao espectador para questionar o que está vendo, associar os conflitos distintos, compreender possíveis alusões. A luz lá, no fundo, provém da fogueira? Os gemidos do ritual correspondem à dor ou ao prazer sexual — ou a ambos? Quem é a mulher seminua deitada no sofá, que também despreza Camil? Paira a atmosfera letárgica e mágica, favorecida pela textura granulada da película e a trilha sonora hipnótica.

No entanto, a busca por uma liberdade de formas leva o projeto a certas provocações menos interessantes, porque mais explícitas e cômicas do que propriamente ambíguas. A cena do esqueleto caindo na escada e a piada metalinguística (“Somos todos atores aqui, estamos fazendo uma ficção científica”) tornam a obra mais pop e autorreferencial do que propriamente analítica a respeito da derrocada deste homem. Por vezes, a liberdade se aproxima bastante da aleatoriedade, do vale-tudo inconsequente.

Isso também se justifica pelo fato que nunca enxergamos o mundo pelo olhar do protagonista, Tanto Camil quanto as mulheres anônimas permanecem a uma boa distância, em termos geográficos e narrativos. Desconhecemos os próximos passos de ambos até que se concretizem em tela, o que produz tanto um efeito de surpresa quanto de absurdo: as consequências parecem não decorrer daqueles atos, ou talvez se passem em intensidade e tom diferentes. 

Talvez seja mais justo falar num macho perdido, ignorado do que num homem atacado. É curioso encontrar uma obra onde o protagonista se converte no coadjuvante da própria busca. Partindo de um salvador viril, ele se descobre dispensável, praticamente esquecido entre mulheres que preferem a companhia uma da outra. Nisso, o homem perde o emprego, a casa, o destino. Ele é condenado a errar sem rumo até a cena final, de um absurdo profundo, onde ele recebe uma sina atribuída às mulheres. O resultado pode ser lido como fábula contemporânea e delirante acerca da disparidade de gêneros, com todas as concessões e metáforas queer e LGBT que o diretor, em sua paródia neo-hippie, consegue embutir.

Mammalia (2023)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.