Notas do Eremoceno (2023)

Apocalipse digital

título original (ano)
Poznámky z Eremocénu
país
Eslováquia, República Tcheca
linguagem
Documentário, Experimental
duração
78 minutos
direção
Viera Čákanyová
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Imagine um sujeito que se dirige a uma multidão, com um megafone em punho. Ele grita as seguintes palavras: “Migração! Guerra! Elite! Privilégios!”. Retoma o fôlego, e continua: “Capitalismo! Energia! Crise! Mudança climática!”. É possível compreender, pelo tom da fala e pelo grupo lexical selecionado, o tema global de sua proposta. No entanto, o que ele tem a transmitir em termos de mensagem? De reflexão, análise? O que pensa o homem a respeito destes aspectos centrais da contemporaneidade? Não há dúvida que estejam, de fato, relacionados, e integrem sem dificuldade o mesmo discurso. 

No entanto, soltas, estas palavras remetem a marcas, slogans, rótulos. A compreensão nasceria justamente da explicação permitindo conectar uma à outra, explicando origens e desenvolvimentos, relações de causa e consequência, contextos históricos, políticos, sociais. Isoladamente, remetem a um brainstorming, numa estratégia quase publicitária para evocar a impressão de sentido sem de fato desenvolvê-lo. Talvez o sujeito do megafone conquistasse fãs e se tornasse famoso nas redes sociais pelas palavras de ordem. Enquanto intelectual, no entanto, não teria nada a contribuir ao debate.

Algo semelhante ocorre ao longo da sessão de Notas do Eremoceno. O filme experimental despeja palavras na tela, espelhadas pelos cantos do enquadramento. Trata-se dos exatos termos listados acima. Outros equivalentes se seguem durante toda a projeção. Há diversas falas em off, tanto de especialistas quanto de uma suposta inteligência artificial, explicando as regras do futuro impiedoso. No entanto, as palavras restam em sua condição de peças de um quebra-cabeça nunca montado. Ignora-se qual figura os fragmentos poderiam formar, caso fossem organizados. 

Notas do Eremoceno (termo que significa “a era da solidão”) possui mais ideias do que imagens a transmitir, ou ainda, mais conceitos do que uma estética capaz de representá-los.

Enquanto isso, a diretora Viera Čákanyová concebe um cenário distópico relacionado à dominação do mundo digital sobre a humanidade. Num futuro próximo, o planeta é controlado pela G-DAO (Inteligência Automatizada Descentralizada Global). Humanos são substituídos por sua versão digitalizada e otimizada. Os resistentes ganham o nome de “botomori”, algo como “os mortos do barco”, em referência a um humano afogado em tentativa de fuga. São descritos na condição de criaturas inferiores, falhas, como resquícios indesejados de um passado distante. A inteligência artificial central e sua nova recruta discutem a efemeridade humana, com a voz típica dos sistemas atuais (Alexas, Siris e afins).

Devido a este agenciamento desconexo, esparso e saturado em termos e imagens (facilmente identificado com o rótulo de cinema experimental), compreende-se o intuito da diretora. Apegada ao raciocínio analógico, e temerosa do crescimento de funcionamentos robotizados, ela concebe uma cautionary tale a respeito dos perigos do mundo virtual descontrolado. Por isso, combina a película em 16mm, signo de um cinema tradicional, com todo o tipo de distorção digital possível de introduzir numa pós-produção contemporânea. Os mundos estão claros, e o conceito, também. Estruturalmente, a proposta de justifica.

No entanto, Notas do Eremoceno (termo que significa “a era da solidão”) possui mais ideias do que imagens a transmitir, ou ainda, mais conceitos do que uma estética capaz de representá-los. A diretora sabe exatamente o que pretende problematizar, mas parece não saber ao certo como fazê-lo. Por isso, acumula estímulos díspares, próximos da aleatoriedade, sob o pretexto que nosso mundo seria igualmente saturado. Ela se apoia nesta liberdade extrema da experimentação, onde tudo vale, toda ordem é possível, e qualquer imagem soa apropriada. Pela dispersão de sentidos, intenções e focos, demonstra a dificuldade em aprofundar o debate.

Em paralelo, o som possui óbvia primazia em relação à imagem. As falas da inteligência artificial fazem mover a narrativa, expressando tudo o que pensam, ou disparando lamentações humanistas. Já as imagens se esforçam para preencher o tempo das evocações existencialistas, seja por aderência (quando correspondem exatamente ao que se diz, citando a “personagem original”, ou seja, a humana de referência da protagonista virtual), seja por oposição (quando representam, por ironia, o oposto do que se diz). As captações soam extraídas de bancos de imagens, de materiais de terceiros. Impera um caráter impessoal, genérico, que Čákanyová abraça enquanto intenção artística.

Resta a decepção de se encontrar diante de um filme onde as imagens não importam de fato. Elas fornecem um ponto focal diante do qual se concentrar, um fluxo etéreo de estímulos para que o público não se desligue da mensagem proposta pela narração. Soam como o equivalente cinematográfico da “música de elevador”, ou da televisão posicionada, sem som, no canto de clínicas médicas. Estão ali para preencher um pequeno vazio, criar a ideia de distração, dinamismo, ou ainda para evitar o silêncio, distrair o tédio. Sustentam uma aparência de meio, jamais de finalidade. 

Quanto à mensagem inicial, acerca dos perigos do mundo digital e das inteligências artificiais substituindo a humanidade, ela se converte em ponto de partida e ponto de chegada. O longa-metragem lança uma hipótese e acredita ter provado, no final, a veracidade da mesma. Ora, a autora evita qualquer pesquisa de fato. Foge à contextualização das questões, à discussão política e filosófica a partir deste tema fascinante. Nem mesmo os preceitos da fantasia e da ficção científica se aprofundam. Cria-se uma obra retórica, pequena e demasiadamente humana.

Notas do Eremoceno (2023)
4
Nota 4/10

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