Paixões Recorrentes (2022)

A ciranda das ideologias

título original (ano)
Paixões Recorrentes (2022)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
94 minutos
direção
Ana Carolina
elenco
Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Iran Gomes, Luiz Octávio Moraes
visto em
Cinemas

Um integralista, um comunista, um capitalista e um anarquista entram num bar. Esse poderia ser o início de uma piada, porém constitui o motor deste longa-metragem, que literalmente confina pessoas de diferentes nacionalidades, línguas e visões de mundo num espaço de aparência desértica, onde têm apenas uns aos outros contra quem se digladiar. Eles se seduzem, se repelem, porém voltam ao mesmo local, uns para os outros. No fundo, amam se detestar, ou detestam se amar — dois gestos equivalentes, neste caso.

A estética da diretora Ana Carolina chama a atenção desde a cena inicial, quando uma rebuscada coreografia de câmera se aproxima e circunda um navio, efetuando uma série de planos-dentro-do-plano, sem cortes, para revelar a chegada ao Brasil de um dos personagens principais. Esta câmera móvel, porém bem estabilizada, jamais se interrompe. Ela passa a acompanhar personagens, afastando-se ou aproximando-se deles, alternando entre um rosto e os demais, girando até revelar espaços fora do enquadramento. A imagem nunca para de se redefinir e reconfigurar, criando um dinamismo fascinante.

O recurso evita o mero exibicionismo, integrando de modo orgânico uma brincadeira constante entre o natural e o artificial, entre o coletivo e o individual, entre o externo e o interno. A obra se move através destas fricções perpétuas, como numa valsa de estilos e linguagens: cada vez que o registro mergulha demais no documental, alguma tirada cômica ou bravata verborrágica traz a narrativa de volta ao teatral. Quando os atores se digladiam de maneira controlada demais, um novo acontecimento resgata a espontaneidade.

A cineasta possui uma maneira interessante de trabalhar tempos e espaços. Tendo à disposição uma gigantesca praia aberta e vazia, prefere confinar os sete protagonistas no minúsculo bar central. As casas se limitam a pequenos cômodos no fundo do estabelecimento comercial, ou em ruínas ao redor. Os personagens sustentam a aparência de marginais sem local real para ir ou voltar, razão pela qual giram, giram e retornam ao eixo. Não existem famílias, instituições, sociedade ao redor. Estes sujeitos perambulam a esmo, a exemplo de fantasmas presos à praia paradisíaca e monótona. Há um aspecto de purgatório, ou de teatro do absurdo nesta configuração.

Os personagens servem de prenúncio à Segunda Guerra Mundial, enquanto comentam, por extensão, o Brasil contemporâneo.

Já o tempo se confunde, se atropela, de acordo com as necessidades da trama. Os longos planos-sequência com a câmera na mão (vide a discussão da atriz francesa com seu agente) sugerem uma proximidade do tempo real, no entanto, saltos na trama são efetuados de maneira quase imperceptível. As roupas são apartadas dos dias contemporâneos, porém evitam delimitar um período específico. Apenas na conclusão se determina que estas personas circulam pela praia em 1 de setembro de 1939, quando foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial. 

Eles servem, portanto, de prenúncio a uma batalha que ultrapassa suas existências, enquanto comentam, por extensão, o Brasil contemporâneo. Sob o governo Bolsonaro, frases como “Que merda de História nos temos!”, e críticas a um “Estado que não cumpre sua missão”, além de comparações do país a uma mula sem cabeça possuem outro significado. A discussão a respeito do comunismo no país, o flerte do regime autocrático com o nazismo também se conecta com referências atuais. Como diria Millôr Fernandes, o Brasil tem um enorme passado pela frente.

As discussões entre os protagonistas sustentam o interesse por serem contraditórias, oscilando em domínio do poder. Às vezes, o dono da birosca, de viés autoritário e nacionalista, toma as rédeas da conversa e dá ordens aos colegas, mas então se cala diante dos delírios messiânicos de um argentino apaixonado pelos militares, ou da fala anarquista do colega brasileiro, e mesmo das intervenções machistas do recém-chegado português. Os atores se revezam nas caminhadas em direção à câmera, parando no ponto exato para mudarem do plano de conjunto ao plano próximo. 

Talvez o dispositivo soasse teatral demais, caso a obra se apoiasse unicamente na força das conversas. No entanto, Paixões Recorrentes demonstra o prazer das composições e das movimentações de imagem, enquanto permite que cada briga acalorada se alterne com instantes de ressaca e de contemplação. De modo geral, a jornada se encaminha a um enfrentamento fratricida, apontando à possível violência no horizonte. Desta maneira, Ana Carolina representa a chegada iminente da guerra, convertendo a pequena birosca num tabuleiro simbólico dos conflitos geopolíticos globais.

O elenco se encontra em nível parelho, bem calibrado para um rico jogo cênico. Danilo Grangheia cria tiques com os olhos e uma fala assertiva, que se equilibra com o estilo sedutor e lânguido de Thérèse Cremieux. Luciano Cáceres compõe um tipo maníaco, de olhos arregalados e gestos maquínicos, em oposto direto ao teor despojado e malandro de Iran Gomes, e ao humor corrosivo de Luiz Octavio Moraes. Até os núcleos se contrapõem: as disputas entre o casal de portugueses apela para o lirismo típico do país europeu, enquanto a cordialidade brasileira tende ao humor. 

Em consequência, a narrativa nunca se esgota, nem estagna. Os personagens vivem num eterno presente (ninguém traça planos para o futuro), apesar de demonstrarem conhecimento profundo da História dos diversos países que representam. Embora possuam ideologias contrárias, questionam a herança de Salazar e Getúlio Vargas, debatem acerca do posicionamento político do Brasil na Segunda Guerra e das divergências com os vizinhos latino-americanos. A decisão de colocar argentinos, brasileiros, portugueses e franceses lado a lado, falando em suas próprias línguas e se compreendendo sem dificuldade, favorece a impressão de um núcleo representativo do mundo.

Ao final, as tragédias não soam exatamente trágicas, e os acertos de conta entre ex-namorados chegam perto de mortes sem concretização. Ao invés de deflagrar uma guerra real, Ana Carolina permanece no terreno simbólico, preferindo que as violências sejam farsescas, de aparência irreal (vide a cena da pedra) ou abandonadas como meros delírios passionais (o enforcamento na praia). Afinal, como se poderiam matar fantasmas — sobretudo os fantasmas do século XX, que ainda nos assombram? 

A câmera precisa abandoná-los e se esconder atrás de um rochedo, na conclusão, porque os personagens, por si mesmos, não terminariam esta jornada cíclica. Pode-se imaginar que, no dia seguinte, voltariam à birosca (inclusive os mortos) para brigar, questionar o anarquismo e o comunismo. Há algo do Mito de Sísifo nesta produção, como se os personagens criassem uma tensão e um enfrentamento insuportáveis, apenas para retomarem a amizade e as novas brigas no dia seguinte. Tal qual Sísifo, o embate político se estenderia, como de fato se estende, pela eternidade.

Paixões Recorrentes (2022)
8
Nota 8/10

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