Uma Vida: A História de Nicholas Winton (2023)

A guerra é uma questão de moral?

título original (ano)
One Life (2023)
país
Reino Unido
gênero
Drama, Biografia, Guerra
duração
110 minutos
direção
James Hawes
elenco
Anthony Hopkins, Johnny Flynn, Helena Bonham Carter, Jonathan Pryce, Lena Olin, Romola Garai, Alex Sharp, Marthe Keller
visto em
Cinemas

“Quem salva uma vida, salva o mundo”. A frase, citada durante os diálogos, representa a perspectiva do diretor James Hawes diante da história real. O cineasta parece ter se encantado, com razão, diante da narrativa de 669 crianças evacuadas da Tchecoslováquia à Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, conforme a ocupação nazista se aproximava do país. Decide, então, abordar a história de exceção enquanto exemplo de heroísmo.

Haveria inúmeras maneiras de representar o episódio. Pelo ponto de vista das crianças, dos pais que permitiram a partida dos filhos, pelos britânicos que os acolheram em lares temporários. O longa-metragem prefere depositar o mérito sobre Nicholas Winton, corretor britânico que se descreve como “europeu, agnóstico e socialista”. Embora possua informações limitadíssimas da política na época, decide organizar a transferência internacional das crianças (judias, em sua maioria), mobilizando equipes e esforços impensáveis em tempo recorde.

Esta escolha não é anódina. Oferece-se ao espectador a possibilidade de se identificar com o “homem comum”, o sujeito movido única e exclusivamente pela boa vontade. Este herói não possui qualidades particulares, conhecimentos profundos, nem uma habilidade ímpar de negociação ou logística. Os grandes feitos teriam decorrido somente de sua boa índole e retidão de caráter. Convém destacar que o roteiro se baseia no livro autobiográfico escrito pela filha de Nicholas, razão pela qual o retrato se mostra unicamente elogioso. O homem não teria um defeito ou ambiguidade sequer.

A guerra se torna uma questão de moral. Acredita-se que, caso as pessoas realmente quisessem, os desgastes humanos durante o nazismo teriam sido reduzidos. O argumento se mostra bastante questionável.

Logo, a guerra se torna uma questão de moral. Acredita-se que, caso as pessoas realmente quisessem, os desgastes humanos durante o nazismo teriam sido reduzidos. O argumento se mostra bastante questionável por diminuir a resistência de populações inteiras face a uma opressão organizada. Ora, o caso representado neste drama é tão verídico quanto excepcional. Vender a exceção enquanto “história inspiradora”, “lição de vida” e afins equivale a ignorar os motivos pelos quais tantas outras tentativas de proteção às vítimas fracassaram. Será que apenas Nicholas era bom o bastante? Aos milhares de executados, faltava força de vontade, boa índole? 

O aspecto sentimental se agrava diante da imagem reincidente de criancinhas indefesas, órfãs, correndo risco de execução em câmaras de gás. O longa-metragem se inicia com fotos de meninos e meninas de expressão taciturna, fotografados pelo herói, enquanto pianos e instrumentos de corda capricham na trilha sonora de impacto. As crianças jamais adquirem a mínima subjetividade, resumindo-se a uma chantagem emocional, uma massa indistinta sem voz nem dilemas próprios, arrastada de um lado para o outro do enquadramento. Elas estão presentes no intuito de reforçar o valor de Nicholas, ou seja, para ele, e em função dele, conforme atesta a conclusão.

Enquanto reforça virtudes pessoais e individuais, o roteiro diminui os aspectos de organização. Como foram encontradas as famílias britânicas dispostas a adotar os meninos e meninas tchecos? Houve alguma avaliação se os pequenos eram bem cuidados nestes lares? As raras doações bastavam para uma operação logística deste porte? Aqui, doadores, lares e itinerários surgem por milagre. Crianças emudecidas e muito bem comportadas são colocadas no banco de um trem; corta; descem na plataforma inglesa onde todos comemoram. A angústia da separação, a incompreensão do que lhes ocorria, a dor dos pais e outros aspectos psicológicos são deixados de lado, posto que o olhar se concentra apenas nas qualidades do herói, impedindo que outros lhe roubem o holofote.

Décadas mais tarde, este homem minimiza suas conquistas, recusando a atenção midiática. No entanto, Hawes filia-se à abordagem de um programa de televisão sensacionalista que expõe Nicholas ao vivo, sem aviso, junto às crianças que salvou muitos anos atrás. Tudo o que puder suscitar emoção, convertendo o protagonista em conquistador único, serve aos propósitos da narrativa. Os aplausos de pé de uma plateia fictícia resumem o discurso do próprio filme ao personagem que deseja homenagear. Esta é menos uma reconstituição dos fatos do que uma ode filtrada pelo investimento afetivo.

Por este motivo, aspectos criativos se convertem em motivos secundários aos criadores. O músico Johnny Flynn, com seu estilo intuitivo e cru de atuação, destoa muito da abordagem profundamente técnica de Anthony Hopkins na versão idosa de Nicholas. No entanto, nada é feito para aproximá-los. O terço inicial está repleto de problemas de edição de som e imagem, de onde aparentemente se retiraram cenas e imagens importantes para reduzir a duração da narrativa — uma festa de Natal, com produção de cenários e personagens, dura dez míseros segundos. A montagem reduz os aspectos da vida cotidiana para se focar em passagens de maior impacto.

Já os coadjuvantes ganham pouca possibilidade de se destacarem de fato, servindo de escada ao corretor, dando-lhe a réplica ou espelhando a boa vontade do homem. Helena Bonham Carter, Lena Olin e Romola Garai limitam-se às funções de mãe, esposa e colega de trabalho do protagonista, respectivamente. Mas, sim, no final da sessão, diversas pessoas choravam na sala de cinema, e este parece ter sido o objetivo da empreitada. “Preparem os lencinhos”, afirmou a representante do filme junto à imprensa. Sempre haverá estranhamento na proposta de chorar e lamentar pela guerra, ao invés de compreendê-la e se indignar contra a mesma — sobretudo no momento em que Gaza, Ucrânia, Etiópia, Iêmen e Burkina Faso atravessam ataques. 

A perspectiva de que estas violências seriam o retrato do “mal”, a ser reparado pelo “bem” (a iniciativa abrupta de Nicholas) reduz a complexidade política, social, religiosa, econômica e mesmo cultural das guerras. O que fazer, então? Torcer pelo aparecimento de corretores caridosos em Gaza e na Ucrânia? Esperar que as sociedades sejam magicamente tomadas por um surto de humanismo, as disputas se encerrem e todos deem as mãos em nome das crianças indefesas? A política é muito diferente da caridade. A incapacidade de distingui-las constitui uma das fraquezas conceituais deste projeto de cinema.

Uma Vida: A História de Nicholas Winton (2023)
4
Nota 4/10

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