Festival de Vitória 2023: O cinema como exercício

Apesar de as atenções do público e da mídia se voltarem muito à produção de longas-metragens, como de costume na maioria dos festivais brasileiros, o Festival de Vitória 2023 impressiona pelo amplo leque de curtas-metragens que se dispõe a abraçar. Há espaço para produções profissionais e ambiciosas na mostra competitiva; novos autores locais, em fase de formação, na Mostra Capixaba; foco nos títulos experimentais na mostra Corsária; e até videoclipes e demais formatos de audiovisual.

Tamanha confluência pode gerar mal-entendidos, ou uma perda de referências. É tão comum quanto equivocado esperar dos filmes iniciantes o mesmo padrão de qualidade dos profissionais, ou esperar dos experimentais a narratividade à qual estamos acostumados nas ficções clássicas. Ora, estas obras são concebidas a partir de linguagens específicas, buscando discursos autônomos. Logo, cabe nos adequar ao contexto e essência de cada categoria.

O Passarinho Menino, de Ursula Dart

Por exemplo, os curtas-metragens da Mostra Capixaba apresentam claras deficiências em comparação com a mostra competitiva nacional, onde se encontram artistas com bagagem suficiente para o desenvolvimento de projetos. De fato, alguns roteiros entre os cinco apresentados poderiam ter maior polimento, e certas intenções se traduziam de maneira excessivamente explícita — como se os autores ainda não confiassem na força e capacidade de significado de suas próprias imagens e sons. Para cada título bom como Trinca-Ferro, de Maria Fabíola, havia outros marcados pela inocência, ou desajuste nas medidas e escolhas.

No entanto, estes curtas iniciantes se encontravam no espaço exato que lhes cabia num festival capixaba: na abertura do evento, que visa valorizar a arte local e apontar vozes que, daqui a alguns anos, podem retornar com segundos e terceiros filmes de qualidade crescente. Não foram escolhidos por serem os melhores da seleção 2023, e sim por constituírem apostas dos curadores. Naquele instante, eram lado a lado com o vencedor do É Tudo Verdade 2023 — o longa-metragem Incompatível com a Vida, de Eliza Capai — e indicavam que Vitória se preocupa com a formação e os anos futuros, tanto do festival quanto do audiovisual na cidade.

De certo modo, decorrem de uma compreensão do cinema enquanto exercício. É comum, em escolas de audiovisual, que os alunos esperem realizar obras-primas em seus trabalhos iniciais. Enxerga-se a oportunidade de criar um filme enquanto privilégio a agarrar com unhas e dentes, sob pena de não ter a mesma chance novamente. No entanto, é comum que aprendam, refinem o olhar, adquiram conhecimento, testem e descubram linguagens ou escolhas que não funcionem, ou funcionem melhor do que outras, no escopo de suas escolhas artísticas pessoais.

Trinca-Ferro, de Maria Fabíola

Não há nada depreciativo em experimentar e se exercitar a partir do cinema, praticando, tateando o terreno. Atletas de alto nível raramente vencem todas as medalhas disponíveis em sua primeira competição; poucos músicos, pintores ou escritores produzem sua melhor obra na mais tenra juventude, antes dos estudos e testes. Os casos de Cidadão Kane, de Orson Welles, e da genialidade de Mozart são lembrados precisamente pelo caráter excepcional. Em outras palavras, representam a exceção que confirma a regra.

Algo semelhante pode ser dito dos curtas-metragens da Mostra Corsária. Entre os oito títulos selecionados, talvez dois ou três adequassem de maneira eficiente o conceito à realização. Transpareciam filmes repletos de ideias pretensiosas, porém com execução apressada, ou munidos de imagens fortes, ainda que mal agenciadas na edição — e, sobretudo, prejudicadas por intervenções excessivas na pós-produção. Este cinema experimental também se refina, utilizando as ferramentas específicas que lhe convêm.

Isso não significa que a programação esteja fraca, ou dando atenção a obras pouco merecedoras deste espaço. Pelo contrário, o grupo de qualidade variável oferece aos criadores a oportunidade de assistir aos seus esforços numa tela grande e receber o retorno do público quanto a essas exibições. Para o espectador, pode-se perceber o início de movimentos que venham a se decantar num futuro próximo. O crítico pode apreciar intenções com claro potencial de se tornarem grandes filmes nas iniciativas seguintes. A cinefilia também se mune desta investigação a respeito de autorias em fase de aprimoramento.

Capuchinhos, de Victor Laet

Assim, resta imaginar o potencial que pode surgir de Patuá, caso conclua melhor a bela proposta, encerrada de modo abrupto. Desmonte possui um conceito claro, bem definido, e ideal ao curta-metragem, ainda que trate justamente o som, seu elemento principal, de maneira insuficiente, e reflita mal sobre os enquadramentos dos vasos deformados pela água. Capuchinhos demonstra um talento impressionante na direção de atores, ainda que se perca ao lançar inúmeras ideias sem desenvolvimento (a chegada da Covid, por exemplo). Pelas Ondas Lambem-se às Margens ostenta um trabalho de pesquisa muito mais interessante do que o agenciamento das imagens pela montagem — e não será o pedido de desculpas no final, quanto aos materiais indisponíveis, que justificará as suas escolhas.

Ora, trata-se de exercícios. Demonstram um cinema inquieto, arriscado, que se preocupa em moldar formas ao invés de agradar a qualquer custo. Vale aos criadores e ao público o contato com estes títulos, capazes de nos lembrar que as grandes obras de arte não surgem por geração espontânea, nem o conhecimento artístico nasce unicamente da cinefilia e boa vontade. Cinema é trabalho, e como tal, se aprende, se aperfeiçoa, se aprimora. Mostras como a Capixaba e a Corsária nos remetem à humildade necessária diante dos grandes trabalhos, e ensinam a treinar o olhar para os próximos que virão.

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