Pacificado: “Contamos as histórias que os moradores do Morro dos Prazeres quiseram contar”

Já está em cartaz nos cinemas brasileiros o drama Pacificado, grande vencedor do festival de San Sebastián em 2019. Esta coprodução entre Brasil e Estados Unidos, dirigida por Paxton Winters, retrata a vida de uma dezena de moradores do Morro dos Prazeres, incertos quanto ao futuro da comunidade após a retirada das UPPS e com o fim dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro.

Cássia Gil interpreta Tati, uma adolescente que nunca conheceu o pai, e vive com a mãe Andrea (Débora Nascimento), dependente de drogas. Quando Jaca (Bukassa Kabengele) sai da cadeia após 14 anos de detenção, a menina pensa ter encontrado um pai. Mas o ex-líder do morro enfrenta a concorrência de Nelson (José Loreto), atual comandante do tráfico no local. O grande elenco também conta com Léa Garcia, Jefferson Brasil, Raphael Logan, Shirley Cruz e Murilo Sampaio.

O grupo participou de uma conversa com a imprensa, respondendo às perguntas do Meio Amargo numa entrevista exclusiva:

Cássia Gil, Débora Nascimento, Paxton Winters e Bukassa Kabengele

Existe uma responsabilidade muito grande quando representamos uma realidade que não necessariamente vivemos. Como se prepararam para este retrato de uma comunidade?

Pax Winters: Eu morei no Morro dos Prazeres durante 10 anos. Depois de seis anos vivendo lá, surgiu a ideia de fazer um filme. Desenvolvi uma história com meu amigo Joseph Carter, e com o Wellington Magalhães, amigo que nasceu e foi criado ali. No início, só fizemos curtas-metragens, com histórias separadas dos jovens. Depois, fui apresentado aos outros jovens, e comecei a fazer testes, experimentações. Nossos produtores nos Estados Unidos nos encorajaram a fazer um longa-metragem a respeito, porque acreditavam que tinha algo diferente ali. Começamos a escrever o roteiro baseado em personagens verdadeiros e situações que aconteceram de verdade.
Encontrei o Marcos Tellechea, que me ajudou a buscar recursos. Foi a primeira vez que escutei o termo “favela movie”. Perguntei o que era isso, porque para mim, existiam apenas histórias universais, que por acaso aconteciam lá, com pessoas que eram minhas amigas, como minha família. Nós contamos as histórias que eles mesmos quiseram contar. Por isso mesmo, desde o princípio, tivemos apoio total dos moradores do Morro dos Prazeres. Todas as locações, os figurantes eram de lá. Em cada departamento, contamos com três pessoas do morro para trabalharem com a gente. Foi uma colaboração completamente orgânica. Apenas encaixamos atores experientes neste ambiente.

A história nasce da ressaca dos Jogos Olímpicos e da retirada das UPPs. Como percebem o legado destes momentos no morro?

Pax Winters: Quando começamos a filmar, os Jogos já tinham terminado há anos. Escolhemos situar o filme neste período para não falar de algo específico de hoje em dia. A ideia era explorar um assunto geral, que aconteceu naquela época, mas poderia ter acontecido antes, ou depois.

Marcos Tellechea: De qualquer forma, este não é o tema do filme, apenas o momento em que a História se passa. Pacificado conta muito mais a história do Jaca do que a história da pacificação.

O diretor Paxton Winters

A história do cinema brasileiro tem um imaginário muito forte de filmes passados na favela, como Tropa de Elite e Cidade de Deus. De que maneira Pacificado se relaciona com estas abordagens?

Jefferson Brasil: O filme se distancia destes filmes a partir do momento em que falamos de personagens totalmente humanos. Pacificado relata uma realidade da favela diferente dos filmes que você citou. Estes últimos se focam no lado negativo do sistema. Pacificado humaniza o que a comunidade realmente é, mas mencionando detalhes que precisam ser vistos. O povo de comunidade nunca foi visto dessa maneira. O filme chega dando voz para esses moradores: Jaca volta depois de 14 anos preso. Como ele vai ser visto na comunidade? O roteiro mostra o dia a dia dos moradores que acordam cedo, às 5h da manhã, pegam condução lotada, cuidam da família… O roteiro humaniza a comunidade e mostra o quanto precisamos dar voz a essas pessoas. Eles viveram no meio de uma opressão durante muitos anos. Mas a mídia mostra algo apenas negativo, um retrato de violência. A gente vai além disso: existe o lado humano, sobre a solidariedade na vizinhança.

Murilo Sampaio: Sim, falamos de violências que atravessam esses corpos pretos de homens e mulheres da comunidade. Usamos muito o verbo humanizar, mas o que somos? O diferencial desta narrativa, na minha opinião, em relação a outras, são as camadas de complexidades e sentimentos, experiências e diferenciações contadas a partir de corpos na favela. Estamos nesse tempo, mas precisamos reiterar as narrativas de violência policial, por uma perspectiva de dominação da polícia? Não, podemos falar dessas múltiplas violências através desses personagens que têm nome, vontades, querer, nomes, histórias. Essa é a diferença desse filme em relação a outros que se focam na violência stricto sensu

Shirley Cruz: Queria reforçar a questão da violência de gênero. Temos a personagem da Cássia, que faz a Tati, e representa a violência sobre a mulher. Testemunhamos recentemente muitos fatos semelhantes de abuso sexual e psicológico contra a mulher. Isso não é novidade. O que tem de novo é o fato de estas situações serem vistas, estarem sendo filmadas. Estamos indo para o embate. A violência sofrida pelas adolescentes, especialmente as meninas pretas da favela, é absurda. É previsível a ausência de futuro, a falta de apoio. Restam a prostituição, as drogas, às vezes mesmo para aliviar as dores. Quando vejo a personagem da Débora Nascimento, e a Karla, que eu interpreto, percebo a dor delas. Quando a violência explode, quando o fuzil chega às mãos e a cocaína vai ao nariz, é porque por dentro, as pessoas já estão dilaceradas. Poucas delas conseguem reverter essa situação. Fico muito feliz que este filme seja um canal potente de socorro, de grito — tanto para os personagens, mas sobretudo para as mulheres. Dona Léa Garcia interpreta a mulher que já foi uma Tati, mas conseguiu sair disso. O roteiro, a produção e o elenco conseguiram colocar seu tijolinho e contribuir de forma verdadeira ao debate.

Pacificado

Uma frase me marcou no filme: “Quanto pior a economia, mais as pessoas bebem, fumam e vão ao cinema”. Isso procede agora?

Bukassa Kabengele: Um bom roteiro é espirituoso e tem boas piadas. A nossa vida e nossos enfrentamentos trazem questões profundas. Esse é um desfecho oportuno que traz esperanças dentro de um sistema cíclico, que nos leva à merda. Mas nos reinventamos da merda, e temos direito à vida, à dignidade. Esta é uma piada inteligentíssima, oportuna, que nos faz refletir sobre qual sociedade queremos ter. Ainda assim, é uma piada oportuna no momento onde temos um desmonte absurdo da arte e da cultura. Temos a possibilidade da transformação em nossas mãos. A educação e a cultura são fundamentais nessa transformação. Que bom que essa frase caiu na boca do Jaca! Mesmo segurando essa barra toda, ele pode abrir um sorriso e soltar essa frase que ecoa para todo mundo. Ele termina com uma criança no colo, que representa a esperança para a gente continuar vivendo.

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