Tire 5 Cartas: Entrevista com Lília Cabral e Diego Freitas

Já está em cartaz nos cinemas a comédia Tire 5 Cartas (2023), estrelada por Lília Cabral. Ela interpreta Fátima, uma taróloga especializada em aplicar golpes nos clientes, com ajuda do marido Lindoval (Stepan Nercessian). Ambos carregam frustrações do passado: ela, que trocou o Maranhão pelo Rio de Janeiro, sonhava em cantar como seu ícone, a Alcione, mas nunca teve bela voz. Já o esposo ainda se apresenta como cover do Sidney Magal, sem grande sucesso.

Certo dia, o quiproquó envolvendo um anel roubado força Fátima a se refugiar de volta em São Luís, onde prometeu que não voltaria. Enquanto se esconde de bandidos, redescobre a cultura local e reata com a família, sobretudo com a irmã (Cláudia Di Moura). O elenco traz Gabriel Godoy, Allan Souza Lima, Sérgio Malheiros, Guilherme Piva, Giulia Bertoli, Thaynara OG e Mathy Lemos.

O diretor Diego Freitas (de O Segredo de Davi e Depois do Universo) e Lília Cabral conversaram com o Meio Amargo a respeito da estreia.

Lília Cabral e o diretor Diego Freitas. Foto: Divulgação

Da série ao filme

Inicialmente, os planos visavam uma série de televisão, de acordo com o cineasta:

“Esse projeto é do Joaquim Haickel. Ele criou a personagem e os principais conflitos; era um sonho antigo dele. A gente estava numa fase em que o cinema tinha acabado. Na época da pandemia, com o outro no poder, a gente decidiu fazer esse filme porque não sabia o dia de amanhã. Inicialmente, seria uma série. Ele me convidou para fazer a versão em cinema, e então começamos a adaptar as ideias previstas para a série ao formato de filme. No final do processo, eu e a Júlia, filha da Lília, chegamos para dar mais uma polida no texto. Partimos para o Maranhão com um orçamento baixo, mas uma equipe apaixonada. Se este fosse o nosso último filme, pelo menos teríamos feito algo. Ainda bem que o cinema não acabou, e que passamos pela pandemia”.

Já a protagonista conta como se apropriou de Fátima, para trazer humanidade à heroína trambiqueira:

“Quando chegou até mim o projeto, pensei: como interpretar esta mulher? Decidi que seria importante transformá-la numa personagem solar. Ela precisava ser tudo ao mesmo tempo agora. Ela decidiu não ser uma pessoa tão confiável, pela frustração de não conseguir cantar, como sempre quis. Isso é algo pequeno: se ela não tinha voz para cantar como a Alcione, poderia ter escolhido outra coisa. Mas a frustração trouxe junto a vontade de transformar a vida em coisas que ela não poderia ter. Ela não poderia ter uma bolsa de grife, então tenta reverter a situação aplicando pequenos golpes para conseguir o seu prazer. O fato de ficar com o anel é um pequeno golpe. Ela atende muitas pessoas cheias de joias, claro que isso mexe com a cabeça dela. Isso não a impede de ter um bom coração: a Fátima tem sentimentos, e ama aquele marido. Mas não é uma pessoa confiável. A vida dela muda pelas circunstâncias, não que ela o deseje. Ela não espera que o marido morra, é claro. Essas surpresas naturais fazem a história ser colorida. É como a nossa vida. A Fátima evolui junto disso”.

Lília Cabral durante as filmagens de Tire 5 Cartas. Foto: Divulgação

Fazer comédia

Freitas confessa que filmes de humor não estavam nos planos quando realizou Tire 5 Cartas:

“Eu sempre disse que nunca faria comédia. Comecei com terror, e depois acabei filmando este projeto, que está sendo lançado agora. Mas ela me abriu possibilidades de compreender o timing de humor, que usei nos filmes seguintes, como um romance, e um suspense que chega aos cinemas em outubro. Gosto de navegar por estes diferentes gêneros, que fazem de mim um cineasta melhor. É preciso estudar cada um deles, o que aumenta o meu repertório. Pensei que isso pudesse ser ruim para a minha carreira em algum momento, porque poderiam pensar que sou um cineasta sem identidade. Mas faço os projetos de que gosto, com os quais me identifico, e que me desafiam de alguma maneira”.

Eu me encontrei como cineasta quando assumi, para mim mesmo, que queria fazer filmes populares. Já tentei me encaixar em registros mais herméticos, e talvez goste de ver essas obras, mas me sinto ainda melhor fazendo filme para um público amplo. Este é um lugar importante para o momento que atravessamos de cinema brasileiro. Precisamos de formação de público, e que o espectador talvez deixe de ver um filme americano para ver o nosso. Isso é fundamental para toda a indústria, o que permite, inclusive, financiar filmes mais herméticos. Mas gosto de ver as pessoas do meu cotidiano assistindo ao filme, e se identificando. Quando fiz Depois do Universo, que foi bastante popular na Netflix, recebi centenas de depoimentos de pessoas que se identificaram com a história. É uma linguagem convencional, pensada para atingir o máximo de pessoas possível. Gosto disso também”.

Já Lília Cabral, acostumada ao gênero, explica sua afinidade de anos com a comédia:

“Eu gosto muito de comédia. A minha família me ajudou: meu pai é italiano, e eu via muito Fellini, Monicelli, Ettore Scola. Ali, eu entendia bem como ser natural no humor. Eles se sentam à mesa, começam a comer, e a conversa já produz algumas provocações e umas garfadas. Talvez inconscientemente eu aprendi, ou me identifiquei, com este tempo de humor, este universo. Isso pode ser um diferencial na minha vida. Quando você vê a pessoa fazer humor com elegância, e dirigir com elegância, isso vira um prato cheio para mim”.

“Fazer comédia é a coisa mais difícil que tem”, ela prossegue. “Ela tem um tempo preciso, é como uma matemática. Dentro deste universo, eu vejo um lado muito patético nas minhas personagens. Em Maria do Caritó, o patético pende ao lado ingênuo. No Divã, o humor da personagem pendia ao lado revolucionário. Em Júlio Sumiu, o humor dela era ainda mais desbocado! Eu enfrentei a possibilidade de me imaginar como uma nova Dercy Gonçalves. A Fátima é desbocada, mas nunca entra no canal da piada”.

Tire 5 Cartas é um filme de situação: as pessoas riem porque entendem o que vai acontecer. Quando o Lindoval se joga em cima dela na cama, e o corpo fica ali parado, as pessoas compreendem que ele enfartou e morreu. O que mais gostei de sentir foi que o riso do público aumentava ao longo da sessão, até gargalhar. O fato de perder o anel enquanto vela o marido faz parte do nosso cotidiano. Se eu me levantar agora, topar o dedo na mesinha e mancar aos pouquinhos, até sair da sala, isso vai ser constrangedor, mas, ao mesmo tempo, divertido. Gosto desse movimento. Tenho prazer em fazer isso. Quando a situação dramática é bem elaborada, dá mais prazer ainda. Neste caso, é bem elaborado”.

Lília Cabral e Diego Freitas. Foto: Divulgação

Trabalhar com Lília Cabral

Freitas assume que tem sido “privilegiado” por trabalhar com grandes atores em seus filmes. Ele não poupa elogios à atriz principal:

“A Lília tem tanta versatilidade! Isso é um parque de diversões para um diretor. Existe uma tradição na nossa comédia popular de colocar a piada no texto e no humor físico. Tentei trazer algum humor na linguagem visual do filme, nos cortes, nas reações dos personagens. Queria ter um leque maior de possibilidades cinematográficas. Quando comecei a explicar para ela o tom que tinha na cabeça, com tantos gêneros misturados, ela comprou a ideia e trouxe várias possibilidades. Ficamos na casa dela, no Rio de Janeiro, ensaiando muito e cocriando juntos. Fizemos uma filmagem rápida, porque tínhamos pouco dinheiro. Amei trabalhar com a Lília, e gostaria de repetir a dose”.

“Fiquei mal acostumado, porque tenho trabalhado com atores muito bons. Eles têm muitos recursos, e propõem muitas coisas. Adoro escutar e agregar o que eles têm a dizer. A Lília tem tanto tempo de carreira quanto eu tenho de vida. Então eu precisava estar disposto a aprender com esses grandes artistas. Algo semelhante aconteceu quando trabalhei com o Lima Duarte, por exemplo. Me sinto privilegiado de tê-la nesse filme. Tire 5 Cartas também traz uma parte dramática interessante, e inesperada para uma comédia. A Fátima tem um monólogo profundo na praça, quando olha para Lindoval, e fala sobre a superação do luto, sobre se reconectar com a cidade que deixou para trás. A Lília consegue passar por todas essas emoções. O filme tem um charme, por culpa toda da Lília Cabral”.

A atriz, por sua vez, explica o processo de composição, que se inicia “pelo texto, nunca de fora para dentro”:

“Não começo pensando ‘Ela vai se vestir dessa maneira, se portar assim’. Mas como eles moram em Copacabana, eu achei que ela precisaria ter uma brasilidade nos movimentos. Não precisava aparecer os peitos, mas me parecia importante que marcasse o quadril. Conforme vamos ensaiando o texto, e encontrando essa mulher, vamos colocando adereços. Quando eu vi, estava vestida daquele jeito. O cabelo veio no processo. Eu estava me preparando, e bem na minha frente, tinha uma foto minha de vinte e poucos anos. Era exatamente aquele cabelo que eu usava na época. Costumavam me dizer que eu me parecia muito com a Marisa Berenson, por causa do olho, nariz… e daquele cabelo. Quando eu olhei a foto, pensei: essa brasilidade poderia casar com este cabelo. Ficou uma figura coerente. No uso dos acessórios, eu tinha dois colares. Se eu colocasse mais um, isso me incomodaria. Tudo que leva ao exagero me perturba. Por isso, o colar e as pulseiras não eram exagerados. O importante era as pessoas verem que ela era vaidosa”.

Freitas aproveita para comentar os outros nomes de destaque no filme:

“É um elenco muito bom, né? Começamos com a Lília, e pensamos em vários nomes para decidir o par da Lília. Quando surgiu o nome do Stepan Nercessian, ficamos obcecados com esta ideia. Quem mais poderia fazer o cover do Sidney Magal? Ele topou na hora, e foi muito tranquilo de trabalhar. Também era importante ter o universo de São Luís, por isso, temos vários atores locais. Fizemos muitos testes, e lançamos uns convites especiais. Para os vilões, escolhemos o Allan Souza Lima, um verdadeiro gênio, e o Gabriel Godoy, que rouba a cena no terceiro ato. No caso do Sérgio Malheiros, ele fez a novela Da Cor do Pecado, que se passava no Maranhão, e tinha como tema a música da Alcione que também usamos no filme. Todo mundo que entrou neste projeto estava consciente de que era pequeno artesanal, mas repleto de pessoas empenhadas”.

Foto: Divulgação

São Luís, terra de magia

A capital do Maranhão desempenha um papel fundamental na trama. Além de ter sido rodado inteiramente em São Luís, Tire 5 Cartas reverencia a cultura e aos habitantes locais.

“Joaquim é de São Luís. Ele tem o sonho de criar um polo de cinema na cidade, e tenho a certeza de que vai conseguir, por ser alguém guerreiro e muito competente. Por isso, ele tinha a vontade de mostrar este local ao resto do Brasil, dentro de uma comédia popular, acessível ao grande público. Ele tem muito afeto com a cidade, e muita história ali. Eu sou filho de nordestinos, mas não conhecia o Maranhão. Quando conheci São Luís, fiquei deslumbrado com as possibilidades e a riqueza do lugar. Acabei trazendo este olhar de deslumbramento, de turista mesmo. O filme tem um pouco disso, e cumpre o objetivo do Joaquim nesse sentido”.

Cabral relembra que a cidade favorecia o caráter fantástico que atravessa a história, quando Lindoval morre, mas segue aconselhando a esposa, na condição de fantasma.

“A história abraça o realismo fantástico, e o brasileiro entende isso. Nossa cultura sempre acolheu isso muito bem, porque sabemos identificar estes códigos. No dia da estreia, era interessante ver que o público abraçou isso com a maior facilidade. Não é nada distante quando ele vira estrela, ou quando o personagem morre e as meninas começam a cantar na praça, sozinhas. É um entendimento amoroso, afetivo, que o brasileiro tem muito quando se vê retratado nas imagens”.

Além disso, ressalta o teor da comédia romântica:

“Esses dois atores já passaram dos 60 anos, e estamos vivendo um grande amor, ainda que interrompido. Muitas pessoas fazem juras de amor antes, mas eles acabam fazendo depois da morte. É bonito. Às vezes, o casal não diz ‘Eu te amo’, mas quando passam por algo difícil, isso desperta uma resposta. Nunca é tarde para declarar o afeto. A união entre eles, e esta forma de romance, representam algo que eu nunca tinha representado. É uma perda, mas não exatamente, porque Lindoval sempre acompanha a Fátima”.

Freitas tem privilegiado o cinema de gênero, entre a fantasia romântica e o terror — ainda que na chave do cinema popular. Ele comenta esta escolha:

“As coisas foram acontecendo. Quando eu começo a escrever, geralmente vou para o lado da fantasia, sem saber muito bem o porquê. Já existia na história original o fato de o Lindoval voltar. Mas as backing vocals cantando, com toda a magia e misticismo, casavam com os meus interesses. Eu amo o Guillermo del Toro, por exemplo, que traz isso em todos os filmes dele. São filmes onde o aspecto imaginário diz muito sobre os sentimentos dos personagens, além de trazerem alguma poesia. Queria trazer um pouco de mim a essa empreitada, e talvez o aspecto de Diego ali dentro estivesse nessa parcela mágica”.

Alcione em Tire 5 Cartas. Foto: Divulgação

Homenagem a Alcione

Além de ser mencionada diversas vezes na história, a cantora Alcione faz uma pequena participação no final, de volta à cidade onde nasceu. Esta presença é mencionada por ambos como o momento mais importante do projeto:

“Eu ouvi muito Alcione. Quando entrava no carro e colocava ‘Não Deixe o Samba Morrer’, ficava com um nó na garganta. Escutei Alcione de todas as maneiras: em shows, com a multidão cantando junto, mas também nas gravações. A minha maior preocupação estava em fazer uma cena muito bonita com ela. Todo mundo estava ansioso por aquele momento, fosse a equipe, fossem os atores. Quando Alcione entra em cena, foi muito emocionante. Para mim, eu tenho registrado na vida que cantei do lado de Alcione! Isso está registrado no cinema. Não tem coisa mais bonita”, recorda a protagonista.

Freitas concorda:

“O filme é uma homenagem a Alcione, esta mulher de São Luís, que representa o Maranhão. Ela é um ícone, e acho fundamental a gente reconhecer a importância dela em vida. Ela foi generosa, porque tínhamos pouco tempo com ela. O filme acabou sendo leve, no final. Quando vejo a reação do público, as pessoas estão todas sorrindo. Isso é incrível”, conclui.

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