O Grande Golpe do Leste (2024)

A comédia do capital

título original (ano)
Zwei Zu Eins (2024)
país
Alemanha
gênero
Comédia
duração
116 minutos
direção
Natja Brunckhorst
elenco
Sandra Hüller, Max Riemelt, Ronald Zehrfeld, Ursula Werner, Martin Brambach, Anselm Haderer, Lotte Shirin Keiling
visto em

A presença deste longa-metragem no circuito comercial brasileiro constitui um evento em si. Os filmes alemães são raros nas salas locais — sobretudo quando se trata de comédias. Talvez a presença de Sandra Hüller (Anatomia de uma Queda) tenha motivado a escolha por parte dos distribuidores, que conferiram um tamanho ainda maior à imagem da atriz nos cartazes, embora ela divida o protagonismo com outros nomes do elenco. Além disso, incluíram uma frase brincalhona (“Quem converte se diverte”) para nos alertar a respeito do tema financeiro, embora a frase contradiga o sentido da trama (talvez “quem não converte” fosse mais apropriado).

De qualquer modo, trata-se de uma bem-vinda proposta de humor político. A premissa baseia-se em fatos, esmiuçados somente nos letreiros finais. Quando a Alemanha foi reunificada, e adotou-se o marco como nova moeda, milhares de notas antigas foram despejadas secretamente num bunker. Ora, uma comunidade encontrou os bilhetes e aproveitou uma brecha no sistema para converter o dinheiro inutilizado em eletrodomésticos para os moradores. Partindo das notas simultaneamente preciosas e inúteis, esfregaram nos olhos do sistema capitalista as falhas de seu modus operandi, enquanto questionavam o próprio gesto: acumular bens não seria uma atitude antirrevolucionária para estas figuras tão progressistas?

O Grande Golpe do Leste demonstra uma capacidade excepcional de inserir o humor político numa embalagem familiar e acessível.

A diretora Natja Brunckhorst aborda este acontecimento com um pé na fábula, e outro na história concreta de seu país. A leveza decorre deste tratamento inconsequente, amistoso, marcado por luzes quentes e sucessivos gestos de afeto. Esqueça qualquer abordagem do roubo com pelo viés do perigo e da ilegalidade, comuns aos heist movies. Aqui, Maren (Sandra Hüller), o marido Robert (Max Riemelt) e o ex-companheiro Volker (Ronald Zehrfeld) invadem o bunker e roubam dinheiro com a alegria inconsequente de um grupo de adolescentes bebendo álcool escondidos. Trata-se de uma provocação ao governo, partindo de adultos acostumados a zombar da polícia e provocar a ordem vigente.

O roteiro se mostra muito cuidadoso na construção dos personagens e das ações. Evita o heroísmo, a inteligência extrema e demais idealizações tipicamente hollywoodianas. Este grupo não rouba o dinheiro inutilizado por ser excepcionalmente capaz, mas por ter encontrado o esconderijo primeiro. São vistos como pessoas comuns, de classe média, que trabalham e defendem uma causa, embora não liderem nenhum movimento em particular. A banalidade com que são retratados constitui um elemento primordial na forma de identificação proposta pela autora. Ela deseja que torçamos pelos heróis por nos enxergar neles, e não por representarem uma versão melhorada de nós mesmos.

Além disso, dispensa-se a noção de um plano ousado, traçado desde o princípio. Nossos heróis inventam os passos conforme avançam. A estratégia se aprimora e se modifica a cada cena, pensada coletivamente com os vizinhos, na base do improviso. Deveriam trocar todo o dinheiro, ou apenas parte dele? Continuar roubando os sacos do bunker, ou manter somente os bens de que necessitam? Deveriam comprar uma usina desativada da região, ou evitar se tornarem donos de uma empresa com histórico de exploração trabalhista? Caso a polícia bata à porta, o que fazer? Brunckhorst investe na dita comédia de erros, onde a espontaneidade das ações se prova valiosa contra a rígida máquina do poder estatal.

Assim, O Grande Golpe do Leste explora a premissa básica de Davi vs. Golias, ou do indivíduo contra o poder institucional. Consegue encontrar uma saída bastante satisfatória, e engraçadíssima, entre as armadilhas simetricamente opostas de puni-los por seus crimes, ou simplesmente afirmar que viverão felizes para sempre com seus sacos de dinheiro antigo. A cada passo, a narrativa se assume enquanto fantasia revolucionária, na qual o golpe financeiro constitui mero ponto de partida para discutirem a utopia de uma vida comunitária horizontal, onde todos serão iguais em recursos e renda, e cada ganho será distribuído entre cada membro da comunidade. Ainda é possível sonhar com tal configuração, em nosso cínico século XXI?

O elenco contribui à leveza da condução. Sandra Hüller, Max Riemelt e Ronald Zehrfeld atuam sem qualquer vaidade, ostentando o corpo despojado e a fala tranquila. Possuem níveis muito semelhantes de composição e trabalho com os diálogos — a cineasta certamente sabe como calibrar um elenco. Apesar de prestações desiguais entre os coadjuvantes (a atriz mirim Lotte Shirin Keiling é muito desenvolta, enquanto o adolescente Anselm Haderer se mostra bem menos expressivo), o resultado ainda transmite uma sensação verossímil de empatia e cuidado com o outro. É possível acreditar na ternura de um personagem com o outro, e do filme com em relação a todas estas pessoas de perfis e motivações bastante distintos.

O resultado transborda de melancolia e ironia, em doses bem calculadas pela direção e pela montagem. Natja Brunckhorst se apropria de um dos subgêneros mais espetaculares do cinema de ação, no sentido estrito do termo — o filme de assalto —, para então desvesti-lo dos clichês habituais. Ela conduz o golpe através de uma combinação entre aventura, buddy movie e comédia romântica, trazendo uma visão bastante progressista a respeito dos relacionamentos amorosos e das novas configurações de família. Nenhum personagem precisava de fato do dinheiro, e tampouco se enriquece a partir dele. Por isso, o ideal do consumismo à americana passa longe da rotina destas figuras que nem sequer retiram os produtos das caixas de papelão.

Por fim, O Grande Golpe do Leste demonstra uma capacidade excepcional de inserir o humor político numa embalagem familiar e acessível. Comprova, deste modo, que a abordagem da história nacional pode dispensar a solenidade e o didatismo ao qual é normalmente associada. O discurso se revela muito mais complexo do que aparentaria a princípio, navegando com destreza entre o local e o nacional, o individual e o coletivo. Trata-se de um precioso “filme do meio”, tentando dialogar tanto com o público médio quanto com os espectadores do circuito dito “de arte”. Ainda concebe a comédia sem simplificações nem estereótipos de gênero e classe. Espera-se que o circuito nacional brasileiro acolha calorosamente este projeto, para que comédias de nível semelhante continuem chegando às nossas salas.

O Grande Golpe do Leste (2024)
8
Nota 8/10

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