RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (2022)

O mito da virilidade fundadora

título (ano)
RRR (Rise Roar Revolt) (2022)
país
Índia
gênero
Ação, Aventura, História
duração
187 minutos
direção
S.S. Rajamouli
elenco
N.T. Rama Rao Jr., Ram Charan Teja, Ajay Devgn, Alia Bhatt, Olivia Morris, Ray Stevenson, Alison Doody, Makrand Deshpande, Rahul Ramakrishna
visto em
Netflix

Entre as incontáveis discussões sobre os benefícios e prejuízos dos serviços de streaming (em relação às salas de cinema), uma das principais vantagens se encontra no acesso a filmes que jamais seriam encontrados no circuito comercial. China e Índia produzem títulos incrivelmente populares em seus países e nas nações vizinhas, porém demonstram dificuldade de exportar essas obras para o Ocidente. Caso o fizessem com regularidade, seriam rivais de peso à hegemonia hollywoodiana. 

Alguns títulos furam esta bolha e nos mostram como estamos distantes da cultura alheia. RRR: Revolta, Rebelião, Revolução apresenta uma forma de cinema que jamais seria feita nos grandes estúdios norte-americanos. Em consequência, se diferencia dos moldes de valor e qualidade percebidos no Brasil, que se banha diretamente das referências dos Estados Unidos. Este roteiro, esta proposta de direção de atores, de efeitos visuais, de trilha sonora seriam vetados por Warner, Disney, Universal Studios, etc. Logo, representam algo novo para nossos olhos — tudo aquilo que pedimos após uma enxurrada de produções semelhantes da indústria americana.

É claro que esta linguagem não seria nova na própria Índia, onde há centenas de títulos semelhantes — ainda que não com orçamento comparável. Trata-se da produção mais cara da história do país, tendo custado o equivalente a US$ 72 milhões (sim, nossos padrões de comparação ainda são a moeda dos Estados Unidos). Para o público local, talvez esta seja uma obra de indústria tão comum quanto os filmes de super-heróis se tornaram para nós. No entanto, não podemos falar por eles. Falemos, então, de uma perspectiva brasileira, ocidental e branca.

Esta seria uma produção de exageros assumidos enquanto tais. A duração é extensa, como de costume em Bollywood e Tollywood. Ela envolve grandes batalhas, romances proibidos, lutas com feras selvagens, perseguições frenéticas, incontáveis explosões, tiros, lutas excepcionais. Os personagens saltam de uma torre, um sobre as costas do outro, com duas armas na mão, atirando para os dois lados. Outro levanta uma motocicleta, gira o veículo pelos ares e o lança em direção ao inimigo. Os dois protagonistas pulam de uma ponte, segurando uma corda, salvam uma criancinha em perigo, jogam-na pelos ares rumo aos braços alheios e protegem-se do fogo com uma bandeira. Depois, saltam de uma motocicleta, caem nas costas de um cavalo e agarram uma arma que voava pelos ares.

Aqui, o artifício se assume enquanto tal. Trata-se de um cinema alegórico, um espetáculo onde mais é mais. O diretor S.S. Rajamouli nunca se esconde por trás da aparência de comedimento.

Os exemplos poderiam continuar, indefinidamente. Os 187 minutos de duração estão repletos de cenas, umas mais extravagantes, mais grandiosas, mais absurdas que as outras. “Isso é ridículo”, poderíamos pensar. De fato, caso fosse feita em Hollywood, esta mesma premissa resultaria em algo risível, posto que a evolução tecnológica e de discurso entre os americanos se desenvolveu rumo à aparência de naturalidade, ao fazer crer: acreditamos estar numa Wakanda verdadeira, numa Pandora plausível, saltando de aviões e helicópteros com Tom Cruise. Neste molde de criação, a imagem impressiona porque parece real.

Aqui, em contrapartida, o artifício se assume enquanto tal. Trata-se de um cinema alegórico, um espetáculo onde mais é mais. O diretor S.S. Rajamouli nunca se esconde por trás da aparência de comedimento, de refinamento ou de bom gosto para as massas — pelo menos, não a nossa noção ocidental, claro. Ele investe numa quantidade impensável de câmeras lentas, com dezenas de animais selvagens devorando pessoas numa festa, dois homens vencendo um exército e conquistando, sozinhos, a independência da Índia contra um Reino Unido sádico. É preciso que o heroísmo desses homens seja profundo, e que a perversidade inimiga se reforce, de modo que a jornada de ambos soe ainda mais extraordinária. 

Não se retrata o mundo tal qual ele poderia ser, com explicações pseudocientíficas e estratégias de guerra. Pelo contrário, valoriza-se a vontade do indivíduo que, diante da injustiça e da desigualdade, parte sozinho para realizar justiça social. O heroísmo reside unicamente no oficial Raju (Ram Charan Teja) e no justiceiro Bheem (N.T. Rama Rao Jr.) que, com a força dos músculos e uma vontade inabalável, libertam seu povo. Eles têm planos de armar a população e promover uma revanche contra o colonizador. Ora, tal esforço será desnecessário: a dupla consegue destruir um império com a inteligência e astúcia. Quando presos, simplesmente arrancam com os braços as barras da prisão.

Logo, RRR: Revolta, Rebelião, Revolução promove um mito fundador da independência indiana através da virilidade. As cenas iniciais dedicam-se a provar que os dois protagonistas são fortíssimos: Bheem luta sozinho contra uma pantera e um tigre gigantescos, vencendo a batalha sem real dificuldade. Raju enfrenta mais de uma centena de homens sozinho, leva pedradas na cabeça e socos no corpo, mas captura seu alvo e o devolve à nobreza britânica, para a qual trabalha. Na sequência seguinte, ambos se dedicam ao resgate do garotinho em perigo, sacrificando a própria vida no processo. Determina-se que: 1. Eles são fortes, 2. Eles são bons. Seguem-se, então: 3. Eles são heterossexuais, 4. Eles amam a família, e 5. Eles amam seu povo. Está construído o herói ideal.

Vale lembrar, neste momento, que a Índia e a China conseguem sustentar algo que os Estados Unidos perderam há décadas: um star system. Ambos possuem atores e atrizes capazes, pela sua presença, de arrastarem multidões aos cinemas e garantirem o sucesso de uma produção, algo que Tom Cruise, Brad Pitt, Angelina Jolie, Will Smith, Julia Roberts ou Sandra Bullock não conseguem mais, há tempos. Portanto, o ideal do herói invencível, belo, puro ainda se cola à imagem de ícones locais, que passamos a descobrir, deste lado do globo, apenas agora. Ambos os protagonistas constituem grandes celebridades na Índia, e Alia Bhatt se sustenta, ano após ano, como uma das jovens mais cobiçadas pela indústria.

Seria possível apontar o uso de efeitos visuais de aparência artificial demais, sobretudo nos animais, ou então as ações improváveis (a aplicação de um antídoto para o veneno de cobra, anunciado como inexistente; o retorno dos heróis após inúmeros ferimentos, etc.). A trilha sonora também pode incomodar, pelo fato de comentar aquilo que já vemos: quando Bheem e Raju se tornam amigos, a letra comenta a amizade e questiona “Será que continuarão assim?”. Depois, transformados em inimigos, são banhados por canções sobre rivalidade entre ex-amigos. Parece óbvio, redundante. 

Ora, nota-se o caráter educativo, preocupado em atingir as massas, em deixar a mensagem claríssima. Não há subentendidos neste disputa cristalina entre o bem e o mal, entre Índia e Inglaterra, entre corajosos e covardes. Logo, os exageros de efeitos, e artificialidade da conduta e das ações se justifica pelo espetáculo mágico, fantástico, apoteótico. Aceitam-se os tigres digitais e as motocicletas erguidas pelos ares como se aceitariam os castelos simulados em fundos teatrais, ou os mundos coloridos do Cirque du Soleil. Eles não precisam parecer reais, apenas representar universos imaginários e ilustrarem valores, símbolos, alegorias. O real é posto entre parêntese.

Por mais interessante que seja esta fábula grandiloquente sobre a revolta dos colonizados contra seus colonizadores, ela ainda depende do imaginário de uma masculinidade profundamente fetichizada. Os homens, nesta trama, tudo podem, tanto fisicamente quanto em termos éticos, morais, legais. Eles não possuem libido, apenas afeto (ou seja, apaixonam-se por mulheres, mas nem sequer as beijam). Já as mulheres serão mães, esposas, namoradas, irmãzinhas esperando pelo resgate. Na corte britânica, elas serão as mais perversas moralmente, embora frágeis fisicamente. Nenhuma garota empunhará uma arma. Sua única forma de combater os homens será a mentira (a desculpa da varíola). 

Impossível compreender o que estes valores representam numa Índia contemporânea, em relação aos valores patriarcais tradicionais. Nem seria útil tentar responder pelos códigos alheios, que o autor deste texto não domina. No entanto, S.S. Rajamouli restaura uma forma de mito fundador da potência pela vontade e pela virtude, um apelo a valores reacionários, no sentido estrito do termo: em oposição à violência das superpotências ocidentais, defende-se a família, o amor romântico, a natureza — não por acaso, eles são comparados a feras selvagens e aos elementos naturais, como água e fogo. A modernidade desta estética endinheirada e computadorizada serve, ironicamente, a defender a segurança de uma sociedade patriarcal de muitas décadas atrás.

RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (2022)
7
Nota 7/10

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