A câmera desliza pelas ruas de uma grande cidade chinesa. Alguns passantes observam o dispositivo, embora a maioria apenas siga seu caminho, entrando e saindo dos comércios, carregando suas sacolas, conversando com os amigos, esperando pelo ônibus. A imagem nunca para de se mover, no intuito de abarcar o maior número de pessoas possível. Ela vai para as praças, e em frente aos prédios institucionais. Mergulha nas vielas e becos de bairros desfavorecidos.
Levados pelas Marés (Caught by the Tides, no título internacional) coloca a coletividade como protagonista. Durante mais de trinta minutos, ninguém terá nome, nem se destacará em relação aos demais — algo pertinente para representar o imaginário comunista, evocado em quadros nos dormitórios e prédios do governo. O espectador se depara com interações entre grupos de operários, ou cantoras de um salão de ópera amador e decadente. Na cena inicial, por exemplo, amigas se reúnem, e provocam-se para que todas cantem juntas. A câmera se delicia com as brincadeiras cordiais entre elas.
Neste segmento, Jia Zhangke demonstra o refinamento de um cineasta experiente, e acostumado a lidar com a dinâmica do acaso. Reaproveitando trechos de suas obras anteriores, em linguagem próxima ao documental, foca-se tanto nas garotas cantando, de pé, quanto no rosto daquelas que escutam, sorrindo, e temendo ser as próximas convocadas à cantoria. Alterna entre os rostos e a sala completa, entre os detalhes e o conjunto. A montagem, impecável, contempla a todas, detalhando tanto o espaço quanto as relações entre as mulheres anônimas. Em questão de minutos, o espectador já identifica as amigas mais tímidas ou expansivas, aquelas provocadoras e as outras, emburradas.
Jia Zhangke busca traçar, numa única obra, a evolução de gerações entre a China regida pelo princípio da coletividade, e aquela dominada pelo princípio do prazer.
Julgando pelo terço inicial, voltado às produções de Zhangke por volta do ano 2000, o espectador se encontra diante de uma obra coletiva, na qual as cidades e os países constituem os verdadeiros protagonistas. Afinal, a câmera visita as usinas e os escombros, atentando-se a uma boneca destroçada, jogada em meio à pilha de rochas partidas. No entanto, a impressão de um Guangzhou, Sinfonia da Metrópole se dissipa quando a trama, enfim, elege uma protagonista. Qiaoqiao (Zhao Tao), personagem recorrente do cineasta, transita entre anônimos e não-atores, encarnando a trabalhadora comum de pequenos empregos precarizados — caixa de supermercado, modelo de uma loja de roupas no atacado.
O longa-metragem começa, então, a ter suas primeiras cenas mais roteirizadas, no sentido tradicional do termo. Numa sauna, um homem poderoso assedia o garçom em busca de uma massagem erótica. Já a funcionária é dispensada pelo homem de seus sonhos, e decide atravessar o imenso país em busca do sujeito, para cobrar explicações. Esta é, obviamente, uma desculpa para Zhangke atravessar cidades do norte ao sul, literalmente, entre trens, carros e navios. O cineasta das geografias, apaixonado pelos espaços, não perde a oportunidade de acompanhar os trens-bala e as gigantescas escunas entre paisagens imponentes da China.
Assim, Levados pelas Marés parte do coletivo ao individual. As multidões iniciais desaparecem, até nos concentrarmos na história de amor fracassado, representando as classes populares, e na trama de magnatas do mercado imobiliário, representando os privilegiados. Qiaoqiao percorre becos, passarelas, dorme num balcão onde encontra uma tomada para carregar o telefone celular. O diretor sempre foi exímio cronista do cotidiano, evitando espetacularizar a miséria (vide a potente cena final). A transição ocorre, igualmente, da película ao digital, e da textura granulada à nitidez extrema dos dispositivos modernos.
Nesta trajetória, do aspecto mais documental à ficção clássica, o projeto também passa do real ao virtual. Conforme se foca em indivíduos ensimesmados, também se volta a uma juventude presa ao TikTok, colada ao telefone celular, comunicando-se com robôs que citam frases inspiradoras de Madre Teresa e Mark Twain. A narrativa se torna cada vez mais (auto)paródica conforme explora a imbecilidade de nossa vida adulta pautada pelo imperativo do humor. Não por acaso, Qiaoqiao desmonta os homens que a abordam por meio de um sorriso exagerado, claramente artificial, que os intimida e afugenta.
O cineasta certamente não se enxerga nesta geração, tratada com o escárnio próximo daquele visto em cineastas como Radu Jude. O retrato da pandemia se insere neste contexto enquanto sintoma de uma sociedade egoica, desprovida de empatia. Dentro do avião, uma celebridade retira sua máscara, apesar do momento de pico da Covid-19. Outro dispensa a proteção por mero desconforto. Em paralelo, na rádio, as autoridades criticam fortemente o descaso dos norte-americanos pela disseminação da Covid, contra-atacando o discurso xenofóbico de Trump.
Por fim, Levados pelas Marés se torna uma obra intrigante, ainda que desigual. Revisitando a si próprio e criando novas cenas, Jia Zhangke busca traçar, numa única obra, a evolução de gerações, entre a China regida pelo princípio da coletividade, e aquela dominada pelo princípio do prazer. Demonstra certa nostalgia pelos tempos antigos, ainda que não o idealize. Sublinha, em especial, a maneira como abandonamos experiências concretas, fraternas e solidárias em prol de uma existência virtual. Os trechos esparsos de ficções, no interior deste panorama, não são dos mais convincentes, mesmo assim, refletem o olhar externo e crítico do diretor. O cineasta talvez mire em tempos e espaços em excesso, porém, ainda sabe muito bem como interpretá-los.