Precisamos discutir a crise na interpretação contemporânea do cinema, visível tanto entre críticos quanto apreciadores não-profissionais. Nota-se a tendência crescente em avaliar um filme pelo que ele diz, e não por como ele o diz — em outras palavras, valorizar o tema, a iniciativa, as intenções, em detrimento da estética. Um bom filme teria um bom tema, ou homenagearia uma pessoa que amamos. Logo, um documentário elogiando uma pessoa querida seria obviamente um filme excelente, afinal, está falando bem de alguém de quem eu também gosto. Os amigos de meus amigos também são meus amigos.
A sessão de Cazuza: Boas Novas trouxe este pensamento à cabeça. Acredito que a ampla maioria de espectadores na cabine de imprensa tenha apreciado bastante o longa-metragem. Alguns cantarolavam as músicas durante a exibição. Ao final, as primeiras reações pelos corredores e nas redes sociais apontaram ao prazer sincero de descobrir um pouco mais sobre o grande Cazuza. Alguns confessaram a felicidade em escutar novamente as belas canções, e testemunhar a resistência do cantor face ao preconceito. Outros admitiram que um filme com Cazuza, e sobre Cazuza, não poderia dar errado. Afinal, trata-se de uma pessoa maravilhosa, não? Nisso, todos concordamos.
Cazuza: Boas Novas se foca obsessivamente na morte, na doença, na magreza, na debilidade. O projeto sublinha este aspecto até converter a narrativa na crônica de uma morte anunciada.
Outro ponto de convergência diria respeito ao afeto evidente, e às motivações bastante nobres de todas as pessoas envolvidas neste filme. Nilo Romero, que co-dirigiu a obra com Roberto Moret, foi baixista de Cazuza, e se apresentou dezenas de vezes com a banda. A mãe do protagonista, Lucinha Araújo, assim como os amigos como Frejat e Ney Matogrosso relembram episódios de intimidade e camaradagem, sem ocultarem alguns excessos do artista, que chegava a insultar seu público nos dias menos aprazíveis. Os autores falam com conhecimento de causa, e conversam com as pessoas corretas, considerando a proposta de reconstituição histórica. Ponto para os cineastas, neste sentido.
Entretanto, falta discutir o filme. Faltam todos os outros aspectos que compõem este e qualquer filme: estética, linguagem, discurso, ponto de vista, direção, fotografia, montagem, visão de mundo, etc. O amor de todos (criadores e espectadores) por Cazuza pode constituir um belo ponto de partida, no entanto, este afeto existe anteriormente à obra cinematográfica, e fora dela. Neste momento, precisamos escolher entre criticar o filme, ou seu protagonista. Cazuza ganharia cinco estrelinhas de imediato — alguém contesta? Mas ninguém está aqui para avaliar Cazuza (pelo menos, não deveria), e sim o filme sobre Cazuza, o que são instâncias radicalmente diferentes.
Ora, alguns aspectos da abordagem chamam bastante a atenção. Em primeiro lugar, a decisão de se concentrar quase exclusivamente nos últimos anos da vida do artista, quando lutou contra o vírus da AIDS e contra o preconceito da mídia. É louvável e compreensível resgatar este tema em tempos de obscurantismo anticientificista. Os Estados Unidos acabam de bloquear centenas de milhões de dólares em pesquisa para uma possível vacina. Enquanto isso, diversos governos conservadores passaram a reconhecer o estudo de doenças sexualmente transmissíveis enquanto imoralidades, ao invés de uma questão de saúde pública.
No entanto, a direção nunca investiga o contexto em torno de Cazuza. Escutamos inúmeros relatos focados em sua magreza, no corpo debilitado, nas idas e vindas dos hospitais, e nas entrevistas para jornalistas abusivos, com destaque para a ignóbil reportagem da Veja. Sabemos que, apesar das dificuldades, ele seguiu cantando, compondo, se apresentando, e recusando-se a viver escondido. Ora, como eram recebidas outras pessoas convivendo com o vírus e a doença naquela época? Que impacto a visibilidade proporcionada pelo artista contribuiu ao debate? Evoluímos no tratamento destes temas, em termos médicos e políticos, desde então? Não sabemos.
Cazuza: Boas Novas reclama, com razão, dos jornalistas intrusivos que sonhavam em obter o furo de reportagem com a confissão do cantor a respeito de sua sorologia. Deplora a atitude daqueles que o descreviam apenas enquanto homem doente, afinal, o cantor foi muito mais, e maior, do que a doença responsável por sua morte. Entretanto, o filme se filia (com consciência disto ou não) à atitude supostamente denunciada. Do início ao fim, foca-se obsessivamente na morte, na doença, na magreza, na debilidade. Claro, seria inevitável mencionar os últimos anos do protagonista sem passar por seu estado de saúde. Em contrapartida, minimiza-se a vida afetiva de Cazuza, as amizades, a relação com os fãs, a avaliação da própria carreira, a mudança no estilo musical, o processo de composição das letras. Mencionando a tragédia desde as primeiras cenas, o projeto sublinha este aspecto até converter a narrativa na crônica de uma morte anunciada.
Em segundo lugar, questiona-se a presença reiterada do diretor à frente das câmeras, oferecendo a si próprio o cargo de personagem central — talvez o de protagonista. Novamente, compreende-se que Romero, amigo e colega de trabalho de Cazuza, coloque-se na obra de alguma maneira. Ora, o trabalho com material de arquivo e a condução das conversas já teria sido uma forma de controle bastante intensa sobre o ponto de vista. Mesmo assim, os cineastas vão além: o baixista discorre acerca de suas próprias recordações, filma-se no enquadramento junto aos entrevistados, e recebe diversos contraplanos em silêncio, onde apenas consente com as falas de terceiros. Parece fundamental aos criadores e à montadora Jordana Berg nos lembrar, repetidas vezes, que Romero estava no recinto.
Além disso, o co-diretor chega a ponto de interferir nas falas, corrigindo ou completando os testemunhos. Este teria sido um reflexo básico de documentarista: quando você presencia a pérola de uma cena onde a mãe de Cazuza canta uma música do próprio filho, obviamente, não se corrige as letras, nem se inicia um dueto com ela. Diante de tamanha preciosidade, o gesto evidente seria lhe proporcionar a liberdade para agir espontaneamente, sem intervenções. Corrigir um termo de Frejat, por estimar que outra palavra seria mais apropriada, corresponde igualmente à armadilha de se sobrepor à fala alheia. Afinal, os diretores possuem interesse real em escutar seus interlocutores, ou estimam já saber o suficiente sobre Cazuza?
Por mais próximo e íntimo que Romero seja de seus personagens, parece contraproducente transformar estes instantes num palco para o próprio cineasta brilhar. Ele ainda encontra oportunidades para oferecer seu próprio testemunho, durante a elaboração de uma pergunta, e para ler um artigo de jornal no qual Cazuza responde à cuspida na bandeira nacional. Adiante, chora em frente às câmeras, sentindo-se mal por ter “abandonado”, em suas palavras, o cantor em seu último álbum. Esta onipresença soa como baixa autoconfiança, como se o cineasta e músico não estimasse sua presença visível o suficiente sem literalmente se enquadrar sempre que possível. Ora, quer maior controle do que estar na cadeira de diretor, especialmente num filme de baixo orçamento?
Em terceiro lugar, o tratamento do material de arquivo, e a qualidade das captações contemporâneas deixam a desejar. Sem surpresas, o material em vídeo caseiro dos anos 1970 e 1980 é marcado por pixelização extrema, luzes estouradas e outros efeitos compreensíveis para a filmagem amadora. No entanto, estas gravações não parecem ter passado por qualquer forma de tratamento ou restauração para chegarem ao longa-metragem. Embora o som (tanto original quanto das conversas atuais) seja impecável, graças ao belo trabalho de Bruno Menezes e Heron Alencar, a imagem aparenta se contentar com a rememoração de Cazuza, embora ele mal seja visto sobre os palcos, seja estourado pela luz branca, seja entrecoberto pelo corpo dos frequentadores de seus shows.
Enquanto isso, as entrevistas são realizadas sem preocupação aparente com a coesão em termos de luz, enquadramento e profundidade de campo. Pelo visto, a direção de fotografia iluminou cada conversa da maneira mais conveniente para aquele instante específico. Isso resulta em efeitos estéticos bastante desiguais, entre o colega captado sob a luz do sol, num jardim; Frejat retratado sob um forte refletor numa sala apertada; e especialistas captados sob a luz sem contraste das lâmpadas comuns. O que dizer, então, da chegada de Nilo e o restante da equipe à conversa com João Rebouças, quando a câmera treme sem preparação para lidar com o imprevisto? Trata-se, uma vez mais, da oportunidade de jogar luz ao cineasta, colocando-o como amigo próximo dos entrevistados.
Tudo isso são pequenezas, diriam alguns. Detalhes, insignificâncias, ou questão de técnica, como têm alegado algumas vozes. O importante seria ter Cazuza cantando, brilhando, sendo recordado para a nova geração e as gerações anteriores. O filme valeria por Cazuza, para Cazuza. Ora, o valor-Cazuza existia muito antes do documentário a respeito dele. Caso consideremos este como o verdadeiro critério de qualidade, então bastaria ler a sinopse, identificar a presença do músico na função de cineasta, e atribuir nossas cinco estrelinhas ao resultado. Mas, neste caso, estaríamos debatendo um tema, não o cinema. Cazuza “é amor”, como afirma a produtora ao final. Ele foi o grande ícone brasileiro que viveu entre 1958 e 1990. Já o documentário a respeito de Cazuza é tudo aquilo existente durante as cerca de 90 minutos de sessão. Filmes têm um tema, mas não são seu tema. É preciso separar as coisas.