Glória e Liberdade (2025)

Terra de revoltas

título original (ano)
Glória & Liberdade (2025)
país
Brasil
linguagem
Animação, Fantasia, Ficção Científica, Distopia
duração
73 minutos
direção
Letícia Simões
vozes originais
Larissa Góes, Iara Campos, Oldair Soares Ammom, Yumo Apurinã, Armando Praça
visto em
14º Olhar de Cinema (2025)

Em Glória e Liberdade, Letícia Simões efetua um curioso percurso pela história do Brasil. No intuito de compreender o presente, volta-se simultaneamente ao passado e ao futuro. Isso significa desenvolver um filme histórico (discutindo a escravidão, o colonialismo, o Império) que também funcione enquanto distopia. A este propósito, o roteiro parte do pressuposto que, num futuro próximo, os Estados brasileiros se tornaram nações autônomas, anexadas em grandes países. A República de Caxias, por exemplo, engloba Maranhão, Ceará e Piauí. O Reino Unido de Pernambuco inclui Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas. E assim por diante.

Deste modo, o longa-metragem associa os fatos à especulação, os dados aos sonhos. Trata-se de um movimento raro, incomum enquanto construção narrativa na cinematografia nacional. Por isso, a autora escolhe aquela linguagem que provavelmente seria a mais adequada (a única adequada?) para tamanha distância do real: o cinema de animação. Esta especialista em documentários e ensaios poéticos abraça inúmeras técnicas de animação, com traços e estilos distintos, para desenvolver a história de Azul. A personagem, claramente concebida à imagem e semelhança da própria diretora, é encarregada de pesquisar as grandes revoluções e revoltas do Brasil antigo, unificado, para extrair ensinamentos destas lutas e transmiti-los ao seu povo contemporâneo-futurista.

Um curioso percurso pela história do Brasil. No intuito de compreender o presente, a diretora se volta simultaneamente ao passado e ao futuro. Mas é uma pena que a narrativa seja excessivamente dependente de diálogos.

Assim, ela aprende a respeito da Cabanagem, Balaiada, Praieira e Sabinada. Cada um destes episódios ganha uma descrição à parte, enquanto a heroína serve de ouvinte e interlocutora direta com o espectador, que os criadores supõem como ignorante nestas temáticas. As falas são claras, sucintas e, ao mesmo tempo, leves, graças às cores, volumes e texturas da estética animada. Não seria demérito apontar uma forma de comunicação infantil no projeto, que se acredita responsável por informar e esclarecer da maneira mais direta e agradável possível. Simões não pretende refletir junto, nem meramente elaborar perguntas. Ela fornece respostas e esclarecimentos prontos ao público — foi assim que aconteceu, a verdade é esta aqui, sugerem os ensinamentos.

Isso implica numa narrativa excessivamente dependente de diálogos. Conversa-se muito nesta trama, sem parar, o que torna o andamento bastante cansativo. Ora, a animação possibilita a criação de mundos diferentes, e a modificação de corpos e cenários num piscar de olhos. Assim, pode driblar com facilidade a expectativa de captar a-vida-como-ela-é. No entanto, a cineasta deposita no texto uma função sepulcral, baseando-se na transmissão oral enquanto forma primária de conhecimento. Em consequência, o formato animado se faz discreto enquanto construção de ludicidade. A imagem ilustra humildemente o teor das falas, completando o sentido sonoro ao invés de propor uma narrativa própria. 

Mesmo a elaboração deste formato soa bastante desigual. No primeiro terço da aventura, com os deslocamentos da personagem Azul-Letícia pelos países segregados do Norte e Nordeste brasileiros, a movimentação dos personagens se mostra excessivamente simples, assim como a representação de suas expressões e sentimentos. Algumas bocas continuam se movendo após o final de um diálogo. Já algumas varreduras panorâmicas da câmera possuem o efeito pouco fluido do flickering, o que transparece os recursos limitados para finalizar a obra com maior esmero. Adiante, no entanto, chegando ao futuro high-tech de uma Pernambuco ostensivamente rica, as imagens se revelam muito mais satisfatórias no uso de cores e na exploração do imaginário de ficção científica. 

Através destas fusões fictícias, Simões pretende ilustrar as revoltas e massacres de 200 anos atrás, sobre os quais pouco se ensina e quase nunca se aprende. Se os dados históricos, com suas datas e nomes de líderes, podem soar enfadonhos a uma parcela do público, a metáfora das revoltas vindouras ajuda a compreender os motivos pelos quais as pessoas seriam afastadas à força de suas terras. O massacre de indígenas, a escravidão de povos negros e originários, e outras formas de genocídio e violência contra grupos minoritários são apresentados, portanto, dentro de uma perspectiva transversal, como se representassem um movimento ininterrupto de opressões sistêmicas. 

Portanto, a diretora parte do pressuposto que não se pode compreender as falhas do Brasil atual sem se voltar às feridas de antigamente. Assim, ela tenta abraçar uma reflexão ampla e ambiciosa da jornada deste país, sobretudo para uma animação de orçamento e duração igualmente restritos. Glória e Liberdade corre o risco de soar pretensioso — no melhor e pior sentidos do termo — para o seu modesto formato cinematográfico: ele decide retratar gigantescos movimentos, suas causas e consequências, o passado e o futuro, o real e a fantasia. Quer aludir à História e fugir dela; ensinar, mas também dar a sonhar.

É claro que, para isso, transforma Azul em mera viajante, que nunca condiciona os rumos da trama. Ela representa o olhar ingênuo, de fora, com quem se espera que o espectador estabeleça uma identificação. A jovem nunca soa como uma figura independente, dotada de traços de personalidade particulares: ela representa uma causa (a voz de um Brasil despedaçado no futuro), enquanto os coadjuvantes ilustram temas e episódios maiores que suas subjetividades. Para um filme tão focado em viagens no tempo, estranha-se que a temporalidade não seja bem delimitada: estaríamos nos anos 1990, pela presença de walkmans? O que dizer então dos celulares mais modernos na cama da protagonista, adiante?

Após passar cerca de 70 minutos esmiuçando generosamente as insurreições do século XIX, Glória e Liberdade ainda se presta a um resumo rápido no final. Tal qual um PowerPoint, oferece cartelas de cada revolta ou revolução, com pontos listados do conhecimento fundamental destes momentos. Nesta hora, o espectador tem a certeza de ser considerado como alguém profundamente ignorante pelos criadores. Entendeu? Entendeu mesmo? Tem certeza? Quer que eu explique mais uma vez? Eu posso explicar, sem problema. Ficou mais claro agora?, insiste o longa-metragem. Entre a boa e a má simplificação do tema, entre a boa vontade e o paternalismo, o projeto elabora sua aula es-tru-tu-ra-da de introdução às lacunas da história do Brasil.

Glória e Liberdade (2025)
6
Nota 6/10

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