Lá nas Matas Tem (2022)

Um olhar que se afasta

título original (ano)
Lá nas Matas Tem (2022)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
55 minutos
direção
Pedro Aspahan, César Guimarães
com
Pedrina de Lourdes Santos, Mestre Bengala, Maria Luiza Marcelino, Ritielly Caroline Pereira Barroso, Mestre Juarez Barroso da Silva
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Este documentário se inicia com uma cena deslumbrante. Uma mulher caminha pela floresta, escolhendo folhas específicas. Ela entoa um canto tão triste quanto potente, relembrando o martírio de crianças negras exploradas por senhores de escravos. Depois, explica o contexto desta letra, além do significado da mesma para as suas crenças. Ela une a natureza e os preceitos da umbanda numa mesma e única compreensão de mundo. A bela voz da personagem se une à fala clara e articulada.

Melhor ainda, a câmera a acompanha num plano-sequência surpreendentemente atento. A maioria dos planos-sequência costuma decorrer de intensa preparação, ensaios e coreografias para que o dispositivo siga adequadamente os movimentos em cena. Aqui, em contrapartida, a protagonista aparenta se deslocar a esmo. Os diretores poderiam, então, abrir o enquadramento para captá-la em seus deslocamentos sem arriscar perdê-la de vista. Ora, aqui começa a grande ousadia do dispositivo, que prefere dançar com a linguagem, conforme ela canta.

A imagem se aproxima num zoom, se afasta quando deseja. Concentra-se no rosto, nas mãos, nas folhas, nos pés, na natureza, e de volta ao rosto. Efetua um malabarismo complexo e, ao mesmo tempo, discreto, orgânico, porque condicionado aos deslocamentos humanos, sem se impor a eles. Assim, demonstra uma sofisticação notável no trabalho de abertura ao outro e na disposição a captar o real da maneira como ele vier. Nota-se uma combinação rara de preparo técnico e humanismo no olhar.

Conforme o maquinário e olhar dão passos atrás, a narrativa se ficcionaliza. O aspecto de espontaneidade no início perde espaço.

Infelizmente, nenhuma cena a seguir possui impacto equivalente ao da abertura. Pelo contrário, a linguagem se faz mais tímida e protocolar. Desperta, inclusive, a impressão de que o trabalho de direção de fotografia não foi executado pelo mesmo profissional em ambos os trechos. Nos segmentos a seguir, retorna-se ao formato que prioriza o conforto ao risco, quando se abre o enquadramento (cada vez mais, aliás) para abarcar o número crescente de personagens em cena. Assim, podem se expressar como bem entenderem. A câmera cessa de jogar junto a estas figuras, dançar e cantar com elas, para se isentar de participação, restringindo-se à observação distante.

Lá nas Matas Tem revela com clareza a sua estrutura de montagem: trabalha-se com uma longa cena em plano-sequência, recheada de cantos, junto a uma curta inserção da natureza silenciosa. Depois, outra sequência extensa de cantos ancestrais da cultura negra, então mais uma floresta solitária, e assim por diante. O contato inicial, íntimo e aproximado, cede espaço a um recuo progressivo do olhar. Na reta final, ele se torna tão distanciado que apenas espia o grupo de alunos, vestindo máscaras contra a Covid-19, junto de encenações dos saberes de origem africana.

Conforme o maquinário e olhar dão passos atrás, a narrativa se ficcionaliza. O aspecto de espontaneidade no início perde espaço quando dois grupos de cantores são convidados a se enfrentar (e a câmera alterna o foco, à direita e à esquerda). Nota-se um controle dos personagens e uma roteirização crescentes à medida que efetuam uma caminhada pré-traçada entre as árvores, ou adiante, na teatralidade da brincadeira com João do Mato. Quanto mais envereda pela dinâmica de grupo, de caráter estudantil, menos arriscado ele se torna. É curioso encontrar uma jornada que parta de uma busca autoral rumo ao documentário acadêmico, com aparência de exercício.

Em defesa dos autores, eles esclarecem no princípio e, novamente, na conclusão, se tratar de uma proposta dos professores-diretores aos alunos de Comunicação Social na UFMG, dentro da disciplina de Saberes Tradicionais. Para uma pesquisa universitária e acadêmica, o resultado está muito acima da média daquilo que se encontra em festivais (de fato, raros filmes de faculdades rompem a bolha de suas instituições). Faltava, no entanto, refletir o conceito em termos de coerência e coesão, além do formato do média-metragem que limita, ainda mais, seu alcance. Embora alguns médias explorem muito bem a duração a que se propõe (pensemos em Vaga Carne, Sete Anos em Maio, Caixa Preta), outros beneficiariam de maior preocupação com a comunicação, posto que se dispõem a integrar festivais de cinema, buscando, portanto, um alcance para além da academia.

Lá nas Matas Tem (2022)
6
Nota 6/10

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