A Era de Ouro (2023)

O cinismo é pop?

título original (ano)
Spinning Gold (2023)
país
EUA
gênero
Drama, Biografia, Musical
duração
137 minutos
direção
Timothy Scott Bogart
elenco
Jeremy Jordan, Michelle Monaghan, Lyndsy Fonseca, Winslow Fegley, Jason Isaacs, James Work, Sebastian Maniscalco, Casey Likes, Sam Nelson Harris, Tayla Parx
visto em
Cinemas

A Era do Ouro nasce da vontade de fazer justiça a um sujeito pouco conhecido na história cultural norte-americana. O diretor Timothy Scott Bogart estima que seu pai, o produtor musical Neil Bogart, teria sido um dos maiores nomes da indústria fonográfica do país. Por isso, ele reúne outros irmãos, na função de produtores e compositores da trilha sonora, para prestar uma homenagem hiperbólica ao pai. Não cabe esperar, portanto, qualquer distanciamento ou senso crítico em relação a este personagem. Para os filhos-autores, o sujeito foi um gênio incontestável, e o filme representa o pedestal que ele mereceria, 41 anos após a sua morte.

O jovem Neil é descrito como um sujeito de talento. Ele seria atraente, persuasivo, inteligente, malicioso, belo, conquistador, hábil negociador, amante irresistível. Este produtor à frente do seu tempo estaria disposto a apostar em nomes de que ninguém mais gostava, graças à capacidade de enxergar o talento secreto no KISS e em Donna Summer. Ele teria criado, sozinho, sucessos como o Village People, Gladys Knight, Bill Withers e The Isley Brothers. Segundo o filme, muitas dessas pessoas sequer sabiam cantar ou se apresentar nos palcos antes da chegada do agente perfeito. 

Além disso, o protagonista é descrito como um vencedor. O longa-metragem constitui um verdadeiro panfleto do American Way of Life e outros conceitos análogos à ideologia conquistadora e individualista dos Estados Unidos. Ele se torna um self-made man, ou seja, o sujeito que prospera sozinho, graças ao talento e à força de vontade, apesar da origem modesta. Para isso, segue a filosofia do fake it ‘till you make it, “finja até conseguir”. Mesmo com dívidas crescentes, elencadas com frequência nos letreiros, ele persiste, em apostas cada vez mais altas. Até que uma hora — adivinha? — confirma a vocação ao sucesso, que sempre estimou possuir.

Um filme bastante cínico. O descendentes do biografado sugerem, cena após cena, que todas as “derrapadas” do pai seriam desculpadas em nome da grandeza adquirida no cenário artístico.

Por este motivo, a vitória se torna o léxico mais repetido nos diálogos. “Você me ensinou a sonhar, você me ensinou a vencer”, ele agradece ao pai. “Eu gosto de vencer”, confessa. “Eu continuo apostando, até vencer”. “Vou vencer. Vou ser maior do que qualquer um já foi. Senão, serei um fracasso”. Por isso, o homem-consumo, homem-virilidade, marcado pela potência e pela ode à performance, conquista todas as mulheres que deseja, quando as deseja. Elas, pobrezinhas, apenas sucumbem ao charme irresistível. (É curioso que os filhos elaborem um retrato tão apaixonado pelo pai, enquanto manifestam tamanho desdém pelas mães). Bogart consegue os artistas mais cobiçados, faz as melhores gravações, reverte as crises mais graves. Ele pode tudo.

A sensação de onipotência resulta num filme bastante cínico. O descendentes do biografado sugerem, cena após cena, que todas as “derrapadas” do pai seriam desculpadas em nome da grandeza adquirida no cenário artístico. Isso significa minimizar, de maneira chocante, os casos de adultério, abandono do lar, chantagem, mentira, manipulação, corrupção, lavagem de dinheiro, abuso de poder, assédio moral e sexual. “Eu vendi mais de 200 milhões de álbuns. Fui eu que fiz você dançar”, gaba-se o herói, diretamente às câmeras e, portanto, ao espectador.

Isso porque a estrutura do roteiro se insere na estrutura das biografias recentes sobre gênios problemáticos do mundo empresarial e tecnológico. Outros filmes profundamente debochados e autocondescendentes servem de origem a esta abordagem: caso de Fome de Poder (2016), a respeito do criador do McDonald’s, e Blackberry (2023), focado na ascensão e queda da empresa de celulares. Mira-se no imaginário criado por Aaron Sorkin, um dos principais defensores de séries e filmes verborrágicos, com personagens se insultando em alta velocidade, através de tiradas sarcásticas, e trocando farpas em corredores de escritórios.

Desta maneira, Bogart (Jeremy Jordan) explica-se o tempo inteiro, sem parar, durante 137 minutos. Ele conta ao espectador de onde veio, o que deseja fazer, os obstáculos à concretização dos sonhos, a saída de uma empresa, a criação de outra, o encontro com cada artista. O produtor fala enquanto narrador em off, mas também justifica-se aos amigos e namoradas, reafirmando a confiança em si próprio. Sobretudo, a montagem distribui ao longo da trama a curiosa “entrevista exclusiva” do personagem com o espectador. Estas imagens funcionam como a melhor metáfora da obra na totalidade: o encontro forçado com um sujeito que se gaba incessantemente, sem que jamais tenhamos solicitado tamanha palestra.

O cineasta capricha na grandiosidade dos números musicais, estimando que, quando mais grandiosa for a apresentação de Donna Summer, KISS, Gladys Knight e outros, mais valor terá o investimento financeiro e pessoal de Bogart neles. No entanto, devido ao orçamento modesto (U$ 27 milhões, quantia baixa para uma biografia histórica nos padrões da indústria norte-americana), transparece problemas com efeitos visuais — vide as projeções pouco convincentes de plateias em shows, e sobretudo uma estranhíssima corrida de cavalos com efeitos mal finalizados.

Os atores se esforçam, dentro daquilo que se solicita a qualquer um deles. Acredita-se que Jeremy Jordan conseguisse oferecer nuances, e diferentes texturas ao personagem. No entanto, o diretor martela o charme do “cafajeste irresistível”, o “malandro sedutor” que se torna amigo de todos os homens e interesse amoroso de todas as mulheres. O herói se torna bastante desagradável por pensar, única e exclusivamente, em si próprio. No entanto, para os criadores, esta é a característica que o torna tão fascinante. 

Não por acaso, o cartaz ostenta uma mão dourada com o dedo do meio em riste. Manda-se os outros à merda — “eu sou mais eu”. A sutileza está muito distante das metáforas empregadas pelo diretor. Cada vez que o herói se lança numa nova aposta musical, ele é visto entrando num cassino, com o mesmo enquadramento, e apostando em novos jogos. O lance se dados se torna uma alegoria tão óbvia que nem sequer atribui algum sentido novo ao gesto do apostador. 

Além disso, cabe à extensa galeria de coadjuvantes orbitar em torno do produtor-sol. Apresentados na primeira cena, os diversos ajudantes da Casablanca Records possuem função nula, já que todas as ações e méritos são creditados a Neil Bogart. As esposas têm pouco a dizer a respeito das traições, e contentam-se em dividir o marido uma com a outra. Quando o roteiro não sabe mais o que fazer com elas, são esquecidas. 

Donna Summer torna-se excessivamente infantil e recatada (para que suas músicas sensuais pareçam uma proeza ainda maior de Bogart), já os membros do KISS se convertem garotos perdidos e chantageadores. Recorre-se à estratégia bastante questionável de reduzir os méritos dos artistas para que os valores do protagonista soem ainda mais profundos. “Você me lembra de uma pessoa que eu gosto muito”, ele dispara a uma mulher, pleno de malícia nos lábios. “Quem?”, pergunta a moça. “Eu”, responde ele. Os autores têm certeza de que estão criando a epopeia de um sujeito encantador. Talvez estejam apenas expondo, involuntariamente, a tragicomédia da personalidade narcísica.

A Era de Ouro (2023)
3
Nota 3/10

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