Mami Wata (2023)

A política dos deuses

título original (ano)
Mami Wata (2023)
país
Nigéria, França, Reino Unido
gênero
Drama, Fantasia
duração
107 minutos
direção
C.J. ‘Fiery’ Obasi
elenco
Evelyne Ily Juhen, Uzoamaka Aniunoh, Emeka Amakeze,
Rita Edochie, Kelechi Udegbe, Tough Bone, Tim Ebuka, Sofiath Sanni, David Avincin Oparaeke, Hidaya Ibrahim
visto em
Mostra de Cinemas Africanos 2023

O vilarejo de Iyi vive em equilíbrio na relação com os deuses. Apesar de paupérrimos, sem hospitais, estradas, eletricidade nem água encanada, possuem alimentos suficientes para os moradores da região. Estimam que os meios provenham de Mami Wata, a deusa das águas, que protege os cidadãos enquanto confere poderes a Mama Efe, uma das anciãs. Quando alguém fica doente, as poções da matriarca bastam aos curativos. O povo não parece aspirar a mais do que esta rotina de humildade gerenciada. Estimam-se ricos.

No entanto, o longa-metragem promove a chegada de ideias e pessoas estrangeiras. Os forasteiros seduzem os habitantes com a possibilidade de crescimento estrutural. Questionam os recursos doados pelas famílias a Mama Efe, que ocupa o casarão mais belo do povoado. Instauram uma semente de ceticismo em relação à divindade, plantam uma ideia de consciência de classe, mas também instigam o ódio à diferença. Descobrem a possibilidade de domínio ao colocarem as pessoas umas contra as outras. Com rapidez, o pequeno paraíso dá um salto perigoso à modernidade.

O projeto assume sua vocação de fábula, ou “folclore da África Ocidental”, conforme atesta o subtítulo. O texto opõe, com agilidade, a tradição e a modernidade; o ocidente e o oriente; o progresso positivista e a fé religiosa; o matriarcado e o patriarcado. As principais questões de organização social se instauram em Iyi, onde conceitos de direita e esquerda chegam sem reflexão nem preparo, impondo-se com violência a um modo de vida funcional. 

A fábula representa um olhar um tanto didático, ainda que deslumbrante e eficaz, a respeito do colonialismo e da desvalorização das crenças nigerianas pelos olhares de terceiros.

Espectadores de quaisquer culturas poderão se identificar com o olhar abrangente a questões filosóficas centrais, tais quais “É preciso abrir mão da liberdade em nome da segurança?”, “O sacrifício de alguns é necessário em nome da proteção da maioria?”, ou “Existe política de progresso sem a produção de desigualdades?”. Por trás da narrativa de uma mãe destronada e de suas duas filhas, encarregadas de manter o legado dos santos, discute-se a filosofia política de modo mais amplo.

Um dos aspectos mais interessantes da obra, no entanto, reside em suas escolhas estéticas. Partindo de um orçamento limitado, os autores tomam decisões simples, porém muito eficazes, para valorizar os espaços naturais em detrimento dos cenários, e criar efeitos de fantasia a partir de poucos focos luminosos. Os atores utilizam búzios e pinturas corporais brancas sobre as peles negras retintas, produzindo um contraste que a direção de fotografia adora explorar. 

Há poucas casas, e ínfimos cenários no total. A maioria das cenas se organiza com pequenos grupos discutindo ou confabulando sobre a areia da praia, ou entre a vegetação, diante de um fundo preto infinito. Para imprimir volume e textura a estas trocas, a diretora de fotografia brasileira Lílis Soares trabalha com intensos focos de luz artificiais sobre os personagens, produzindo as sombras e as camadas desejadas no interior de cada enquadramento. Assume-se a artificialidade dos acontecimentos através do tratamento fantasioso de luz.

Enquanto isso, o diretor nigeriano C.J. ‘Fiery’ Obasi exclui qualquer possibilidade de espaço externo a Iyi. Pessoas chegam de cidades vizinhas, e as protagonistas fogem, uma de cada vez, rumo a destinos desconhecidos. No entanto, a câmera não as acompanha. O mundo ao redor se converte em mistério, favorecendo o aspecto mágico desta localização enquanto poupa preciosos recursos de produção. É louvável a maneira como os criadores utilizam as restrições a seu favor. 

Nunca paira a impressão de alguma cena mal feita, ou de escopo reduzido devido a questões orçamentárias, pelo contrário: Mami Wata preserva a aparência de opulência necessária à guerra política entre as mulheres, guardiãs da fé, e os homens, representantes de uma milícia belicista e escravocrata. A “guerra dos tronos” se constrói pela intensidade no rosto dos atores, pela riqueza das pinturas e ornamentos, pelo trabalho precioso de som direto e de efeitos, valorizando as ondas e o vento. 

Deste modo, o longa-metragem produz uma aparência de magia através de efeitos práticos. Quando as divindades se concretizam em cena, elas o fazem sem romper com o funcionamento do real. Existe um respeito pela deusa das águas e, acima de tudo, pela crença dos cidadãos nesta figura. Comprovável ou não, a santa protetora existe para eles, e organiza o funcionamento da comunidade. Isto lhes basta. O ceticismo arrogante, que trata de quebrar imagens de santas e zombar da credulidade alheia, ilustra o olhar eurocêntrico às culturas africanas.

A narrativa se conclui bem, no sentido de fornecer respostas necessárias enquanto deixa em aberto algumas possibilidades valiosas de interpretação. O cineasta evidencia seu posicionamento a favor das mulheres e do direito à crença, sem para isso ridicularizar os fundamentos da tese cética dos estrangeiros. Logo, mostra-se avesso a posturas ditatoriais de esquerda e de direita, privilegiando o conceito de pequenas sociedades autorreguladas. \Não repudia a modernidade, apenas seu caráter impositivo.

Por fim, a fábula representa um olhar um tanto didático, ainda que deslumbrante e eficaz, a respeito do colonialismo e da desvalorização das crenças nigerianas pelos olhares de terceiros. Dirige-se, por um lado, aos habitantes capazes de se enxergar nas crenças retratadas (Mami Wata constitui uma divindade realmente adorada por certas culturas no país). Por outro lado, volta seu discurso aos cidadãos estrangeiros, raramente confrontados a obras nigerianas. Eles encontram menos um retrato da vida como ela é do que uma representação engajada e muito orgulhosa da identidade nacional, como ela poderia e pode ser.

Mami Wata (2023)
8
Nota 8/10

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