Onoda: 10 Mil Dias na Selva promove uma experiência muito peculiar. Num primeiro momento, pode sugerir uma produção de guerra convencional, a partir dos militares japoneses resistindo à invasão norte-americana na ilha de Lubang, Filipinas, em 1944. O tenente Hiroo Onoda seria o herói perfeito para um filme de ação: ele possui uma moral inabalável, disciplina exemplar, e jamais se rende face às dificuldades. No entanto, a impressão de dissipa com rapidez.
Primeiro, graças à atmosfera proposta pelo diretor Arthur Harari. O espectador se depara com imagens granuladas, de belas cores saturadas, em registros silenciosos e grandes planos abertos. A guerra se traduz numa sucessão de cenas de espera, de caminhadas silenciosas ou reflexões diante de uma paisagem vazia. O inimigo nunca dá as caras em quase três horas de duração. Logo, o interesse do cineasta se afasta do espetáculo de valentia e força. Ele busca, por assim dizer, uma espécie de filosofia da guerra, ao invés de sua práxis. Afinal, o que leva os homens a lutarem?
Segundo, Onoda revela, progressivamente, uma formação militar distante dos ideais de honra que dominam o imaginário popular acerca dos japoneses. O protagonista fictício, baseado no militar real, integrou um programa clandestino de combate, dedicado a uma “guerra secreta”. “Mentira, traição, humilhação. Nada é proibido para vocês. […] Vocês são seus próprios oficiais”. A lógica pregava a sobrevivência a qualquer custo, caso em que regras morais e éticas poderiam, e deveriam, ser rompidas. Não se guerreava em nome da nação, e sim pela própria vida. A batalha se converte num inesperado desafio pessoal e íntimo: ganha aquele que não morre.
Terceiro, o roteiro jamais faz alarde a respeito de fortes guinadas na trama. A Segunda Guerra Mundial acaba, porém ninguém avisa Onoda. Ele segue a postos, escondido, procurando os americanos. Este fator poderia ser tratado como uma tragédia grega, um instante de tensão, uma explosiva ironia do destino. Ora, a montagem inabalável segue em ritmo análogo ao do herói, para quem os dias se sucedem sem transformações de tom ou objetivo. Por isso, cuidado: há perigo na esquina. Os americanos ainda podem estar na selva, escondidos, prestes a atacar.
A crença se torna o tema mais importante desta obra monumental, espécie de opus de uma guerra íntima e invisível.
Os homens começam a desistir da luta (“A gente não viu inimigo nenhum!”), desertando, morrendo de fome ou doença. Onoda permanece. Para o espectador, resta a triste ironia de saber que a guerra se encerra em 1945, porém o tenente se mantém a postos até 1976, na mesma ilha, aguardando ordens para atacar, ou talvez encerrar o combate. Existe um caráter próximo do teatro do absurdo, da fantasia. Harari, por sua vez, prefere contemplar a rotina deste sujeito com uma admiração silenciosa, parceira, contrária aos julgamentos morais. Onoda não é louco nem herói, apenas um sujeito que adotou um regime muito particular de crenças.
Afinal, a crença se torna o tema mais importante desta obra monumental, espécie de opus de uma guerra íntima e invisível. O militar acredita ainda estar em batalha, por isso, mantém a arma presa ao punho, e segue as metas traçadas inicialmente. Surgem, aqui e acolá, inúmeros indícios de que o conflito mundial teria chegado ao fim. Para Onoda, trata-se de notícias falsas, fabricações do inimigo para vê-lo baixar a guarda. Ele não cederá jamais. O homem desacredita no que vê, no que escuta, e passa a acreditar naquilo que gostaria. O real se molda aos seus desejos.
Por este aspecto, Onoda: 10 Mil Dias na Selva soa tão contemporâneo, e próximo do Brasil atual. Vivemos o período em que milhares de pessoas acreditam em falas delirantes de um chefe de Estado, descaradamente falsas. Imagens grosseiramente manipuladas em computador e notícias impossíveis são toleradas por fãs (de onde surge o sentido de fanatismo) do atual presidente. A política se converte em religião, em questão de fé: num mundo de incertezas, prefiro acreditar naquilo que corresponde às minhas ideologias. Caso Onoda vivesse no século XXI, poderíamos falar sem dificuldade em fake news.
Esta lógica afetiva em relação à realidade é levada ao paroxismo pela permanência de cerca de 30 anos na selva. No fundo, talvez o herói já soubesse do término da guerra. No entanto, havia prometido a si mesmo um combate feroz, uma luta sanguinária pela sobrevivência, além do retorno com glória e fama. Na ausência destes elementos, recusa-se a abandonar o terreno de combate: o adversário haveria de aparecer, mais cedo ou mais tarde. O que resta de um guerrilheiro sem a guerra? Que propósito tem uma vida de simulacros?
Pode-se sublinhar um aspecto importante na construção psicológica deste homem: a virgindade. Onoda nunca teve experiências com mulheres, algo que se tornou ainda menos provável na selva, entre os homens. A vontade de concretizar o sexo se encontra com a vontade de concretizar a morte: ambos permanecem no campo das ideias, como metas de uma virilidade distante. O corpo segue como uma abstração, assim como a vitória e o retorno. O tenente leva uma vida presa às ideias, tão satisfatória em si própria (ele resistiu quando todos pereceram ou partiram) quando incompatível com a vida de volta ao Japão. Por isso, a única possibilidade era permanecer na natureza solitária.
Harari preserva um olhar atento, porém respeitoso e distanciado. A câmera evita os close-ups nos homens, mas, em paralelo, recusa-se a admirá-los à distância, como se fossem espiados. O posicionamento da imagem — e, por extensão, do espectador — se encontra na função de um soldado suplementar. Quando todos abandonam Onoda, resta a imagem. O cinema permanece junto a este corpo triste e firme, ano após ano. O uso da granulação da película, os planos fixos e a amplitude dos espaços permitem compreender a pequenez do sujeito isolado num cenário gigantesco.
Enquanto isso, o roteiro se divide em três atos rígidos, cada um ocupando cerca de uma hora de duração: I. A guerra real, junto aos soldados famintos e frágeis; II. O luto da guerra, quando pairam dúvidas quanto à continuidade dos enfrentamentos; e III. A solidão, quando o herói mergulha numa espécie de guerra particular, invisível, íntima, cujo sentido se completa apenas para ele próprio. A chegada de um turista, nos anos 1970, apenas explicita a distância entre a compreensão materialista e capitalista do mundo e o regime monástico abraçado pelo militar.
As atuações contribuem ao respeito não-idealizado pelo personagem. Yûya Endô, na juventude, e Kanji Tsuda, na fase adulta, oferecem uma compreensão profunda deste homem, além da guinada entre a busca por uma vitória material e fatual, a princípio, para uma conquista espiritual e moral, em seguida. A interação com os colegas de batalhão, e a tristeza de ver um rádio de pilha parar de funcionar transmitem a força da direção em captar pequenos gestos cotidianos.
Diversos filmes de guerra opõem os objetivos macropolíticos ao efeito concreto na vida dos indivíduos. A grande singularidade deste longa-metragem se encontra na representação unicamente psicológica da Segunda Guerra Mundial. Jamais vemos canhões fumegando, tropas correndo, ataques mirabolantes, fugas arriscadas. A ferocidade do combate se passa tão somente na cabeça de Onoda, que vive, durante a metade de sua existência, os dilemas espirituais de uma guerra imaginária. É uma obra belíssima, repleta de poesias e respiros, que mergulha o espectador numa meditação acerca da natureza humana.