As Linhas da Minha Mão: “Toda vida é uma dramaturgia em si mesma”, defendem João Dumans e Viviane Ferreira

Na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o grande vencedor da Mostra Aurora, principal seção competitiva do evento mineiro, foi o filme As Linhas da Minha Mão, de João Dumans. O documentário experimental segue o fluxo de pensamento de Viviane de Cássia Ferreira, atriz com histórico de frágil saúde mental. Conforme se abre às câmeras, ela descreve episódios de crise, sua postura diante da arte e seus encontros amorosos.

Enquanto isso, o diretor a filma em planos fixos e cenas longas, permitindo à atriz-personagem desenvolver sua narrativa com total liberdade. Em Tiradentes, o Meio Amargo conversou com João Dumans e Viviane Ferreira a propósito deste projeto singular:

Viviane de Cássia Ferreira durante o debate de As Linhas da Minha Mão na Mostra de Tiradentes.
Foto: Leo Fontes/Universo Produção

O filme é focado na Viviane, mas ao contrário das biografias tradicionais, ele não detalha o percurso profissional, nem a trajetória pessoal. Como escolheu qual lado apresentar dela?

João Dumans: Não me interessaria fazer um filme dessa maneira, em primeiro lugar. O que me interessou desde o início não foi apenas a história de vida da Vivi, mas também a nossa capacidade de criar e produzir coisas que nos estimulassem artisticamente. Juntos, tentamos explorar lugares e formas diferentes de nos expressar dentro do cinema. Era uma investigação de lugares poucos conhecidos nas formas de atuar, de falar sobre si mesmo, de se relacionar com a câmera. Tanto quanto o interesse de um pelo outro, havia o interesse por experimentar com as formas do cinema, da arte, da vida. Isso nos direcionou desde o início para lugares menos comuns, menos conhecidos.

A ideia era produzir estímulos de imaginação, estímulos emocionais, para deixar a Vivi ser quem ela é, mas também fazer o trabalho dela enquanto atriz.

Viviane, suas conversas parecem muito espontâneas no filme — pouco controladas ou condicionadas pela direção. Como foi determinado o seu papel em cada cena?

Viviane Ferreira: Não havia controle nenhum! Os processos rumavam para o indeterminado. Foi uma confiança, uma generosidade do João sobre mim, sobre meu trabalho e meu corpo. O máximo que eu posso imaginar é que ele soubesse como eu me movimentava, porque eu nunca sabia o que ele estava enquadrando, e ele também não sabia o que eu ia dizer. Na cena com o Douglas Klinger, por exemplo, certo dia ele me avisou que eu filmaria com o Douglas no dia seguinte. Mas eu não sabia onde seria, nem o que eu falaria, nada. O João também não sabia para onde a conversa ia. Ele se posicionou e foi, confiando que eu daria um final àquela história. O único pedido para mim tinha sido esse: “Agora você conta ao Douglas o que aconteceu nessa última visita ao CERSAM (Centro de Referência em Saúde Mental)”. As interrupções do Douglas não eram nada combinadas. A confiança mútua me dá uma vivacidade muito grande no processo. Quando eu o percebo ali perto de mim, sinto que ele está se divertindo, então fico saidinha, pensando: “Está dando certo!”. Fico confiante. Existe algo ali, entre eu e o João, que vai muito além do aparato tecnológico. É isso que sustenta esses projetos que vão para o indeterminado, mas nunca para qualquer lugar.

João Dumans: Os projetos vão para o indeterminado a partir de bases sólidas, de crenças compartilhadas e de uma confiança mútua. É um lugar de muita confiança, e de sintonia em relação aos propósitos. Isso tem a ver com a maneira como aquela relação vai se construindo, seja retomando muito longe no tempo, seja nas circunstâncias específicas daquela cena, de como a atmosfera, o espaço, as escolhas incentivam essa disponibilidade e produzem essa liberdade para que a cena aconteça. Eu via as cenas como situações e, em cada uma delas, eu tinha que, ao mesmo tempo, abrir mão do controle, mas também determinar claramente quais seriam as circunstâncias em que aquela cena ia se dar. A ideia era conseguir, a partir dali, produzir estímulos de imaginação, estímulos emocionais, para deixar a Vivi ser quem ela é, mas também fazer o trabalho dela enquanto atriz.

João Dumans e Viviane Ferreira durante o debate de As Linhas da Minha Mão, mediado por Marcelo Miranda, na Mostra de Tiradentes. Foto: Leo Fontes/Universo Produção

Existe um trabalho rico de sons e acontecimentos fora de quadro. O Douglas intervém, pessoas pelas ruas pedem para participar. Como determinou essa atenção na Viviane, porém com o mundo pulsando às beiras?

João Dumans: A primeira coisa que me interessou na Vivi, apesar de ser um filme que trata dos processos da loucura, da vulnerabilidade psíquica, era a capacidade dela de formular estados emocionais complexos. Ela tem uma inteligência para falar de si mesma, de uma maneira que para mim não estava comprometida com o julgamento que um “outro” poderia fazer. É lógico que a loucura exerce uma fascinação — e isso não é de hoje — por causa dos estados mentais e emocionais que é capaz de produzir. A loucura nos revela contrapontos em relação às nossas perspectivas de mundo, e isso produz outras formas de expressão. Para mim, então, era um filme sobre a loucura, mas no qual me interessava ver uma linha de raciocínio que, apesar de desviante e cheia de digressões, me parecia muito precisa no que queria dizer, apesar dos descaminhos – ou por causa deles. Meu interesse era observar a evolução desse pensamento em construção, por caminhos às vezes imprevisíveis, mas muito reais, verdadeiros e sólidos, inclusive dos pontos de vista médico, humano, político, sexual.
É uma câmera que observa atentamente pensamentos, ideias em construção, a partir da fala, do corpo, da maneira de se mover. É um pensamento entranhado que evolui junto ao corpo, no interior da cena. A câmera se coloca em posição de observar. Não queria que a câmera enlouquecesse junto com a personagem, que vibrasse, fizesse piruetas e fosse contaminada pelo transe da loucura. Queria simplesmente observar alguém desenvolvendo um raciocínio. Às vezes acho maluca essa ideia de que o estado da loucura é o transe permanente. A Vivi tem 55 anos, e teve dois ou três episódios de surto ao longo da vida. Na maior parte do tempo, é uma pessoa que se expressa com elegância e clareza. Por que não ouvir essa fala, com todos os seus desvios e suas loucuras, e sua força intrínseca, evoluindo como uma ideia clara, com uma lucidez espantosa?

Existe uma voz ali que ultrapassa a mim e a qualquer história que eu possa contar: é a voz da loucura, das pessoas deprimidas em casa, com transtorno bipolar, sofrendo.

Você narra episódios de criação artística dolorosa que teve no passado. No filme, sua fala é muito íntima, a respeito de crises e episódios eróticos. Foi tranquilo para você tocar em temas tão pessoais?

Viviane Ferreira: Era tudo muito tranquilo. Eu dedicava ao João o alcance do cinema, e foi fácil, porque eu fico bem boba diante de uma câmera. Então eu contava aquele caso sendo observada por ele. Além disso, os interlocutores eram pessoas de minha confiança. Esse foi um cuidado do João, que trouxe inclusive o Leandro, meu primo, que sempre esteve comigo. Mesmo no momento da Praça Sete, a vida é tão amiga da arte que eu deveria falar sozinha, mas me preparei para o caso de algum passante chegar. Apareceu um interlocutor que se sentou ao meu lado, e por graça da vida, ele tocava gaita. Aquilo foi uma surpresa, um presente da arte para a vida. Você acredita que o amante italiano, sobre o qual falo nessa cena, tocava gaita também? Ele apareceu do nada e pediu: “Filma eu, filma eu”. O destino vai compondo, como se houvesse um desejo que a obra se realizasse. Isso ultrapassa a mim e ao João. Acredito muito nisso, até agora. Existe uma voz ali que ultrapassa a mim e a qualquer história que eu possa contar: é a voz da loucura, das pessoas deprimidas em casa, com transtorno bipolar, sofrendo. É bom saber que a nossa diferença pode ser vista não como inferioridade, mas como elemento de interesse à arte.

As Linhas da Minha Mão

A propósito de uma câmera que não “pira junto”, neste filme e em Arábia, você mantém longos planos fixos diante de personagens que compartilham as suas histórias. Alguns críticos chamam de cinema observacional, ou de não-intervenção. Esses termos fazem sentido para você?

João Dumans: Não acho que seja um cinema de observação, apenas. É um cinema de construção. O que eu digo sobre o trabalho de um pensamento em construção também vale para o Arábia. Como você, ao longo de uma duração, acompanha alguém desenvolver um pensamento sobre a própria vida? Os dois filmes têm isso em comum: são filmes sobre pessoas invisíveis ou marginalizadas, sofrendo numa sociedade que procura aplicar o mesmo parâmetro a todos, com dificuldade de integrar as diferenças. É uma sociedade extremamente desigual, e às vezes as pessoas que não têm o privilégio de se expressar precisam de tempo para que o pensamento se construa a partir de outro lugar, diferente do nosso. Ou melhor, acho que nós precisamos de tempo para ouvi-las. Acho que o Sete Anos em Maio também tem isso. É a ideia de ver este pensamento nascendo, a partir da vivência de sofrimentos, violências, tristezas e alegrias reais. Então se constrói uma filosofia, ou talvez uma ética própria de vida. Seja o Juninho, seja a Vivi, eles nos interessam porque são capazes, a partir dos dados e experiências pessoais, de fundar uma ética de vida própria. Isso dá a essas pessoas força para atravessar esses sofrimentos, e as torna mais sensíveis ao sofrimento dos outros.

Nosso trabalho passa muito por saber ler, em pessoas que admiramos pela história de vida, certas contradições e potências dramáticas.

Muitos diretores querem que o mundo se adeque à câmera deles. Mas esta maneira de filmar, pelo contrário, exige que a câmera se adeque ao mundo.

João Dumans: Penso nisso sobre o trabalho do Affonso [Uchôa], e recentemente, sobre o meu também, em como a gente se move sobre esse território da atuação, de atores não-profissionais, não diretamente envolvidos com o cinema. Nosso trabalho passa muito por saber ler, em pessoas que admiramos pela história de vida, certas contradições e potências dramáticas. Toda vida é uma dramaturgia em si mesma a partir de seus conflitos, escolhas, indecisões, frustrações, desejos, circunstâncias. Todo mundo traz isso. Estas vidas específicas que a gente escolhe falam de alguma maneira sobre a realidade e sobre as contradições do nosso país. O filme consiste em expandir essas contradições a partir de uma linguagem cinematográfica, literária, teatral, etc. Como colocamos isso para funcionar dentro de um dispositivo cinematográfico? Como as vivências, a inteligência e a experiência dessas pessoas podem se expressar em termos cinematográficos, em termos artísticos? Nossos filmes fazem esse esforço de ler estas contradições e, através do filme, projetá-las, potencializá-las, para dizerem não apenas sobre a vida destas pessoas, mas sobre a sociedade e o país onde vivemos.

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