“O cinema argentino vai sobreviver. Eles não vão nos vencer”, declaram profissionais do país

O dia 24 de janeiro de 2024 foi marcado por uma grande passeata em Buenos Aires e outras cidades argentinas. Centrais sindicais e outros grupos da sociedade civil protestaram contra as medidas econômicas anunciadas pelo novo presidente, Javier Milei, que promete inúmeras privatizações enquanto aumenta os poderes do Executivo, no intuito de limitar a pressão no Congresso Nacional.

No caso específico do audiovisual, teme-se a implementação de medidas prejudiciais ao INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais), equivalente argentino da Ancine. Ainda em campanha, Milei havia declarado a intenção de retirar o financiamento estatal às produções do país, cortando igualmente os recursos aos festivais e suspendendo as medidas de apoio à distribuição e exibição.

A classe artística tem se unido, mobilizando importantes vozes internacionais (Pedro Almodóvar, Abel Ferrara, Aki Kaurismäki, entre outros) na defesa do patrimônio cultural argentino. Em cartas, vídeos e notas, ressaltam que “a indústria audiovisual gera trabalho genuíno para mais de 600 mil pessoas de maneira direta e indireta, e representa mais de 5,2 %da economia argentina”, conforme reportado pelo Télam Digital.

Debate Além do Espelho: Programar Filmes Latino-americanos na América Latina e na Europa, durante a Mostra de Tiradentes

Enquanto isso, no Brasil, a Mostra de Cinema de Tiradentes volta seus olhos não apenas aos filmes brasileiros, mas também às políticas públicas. A Carta de Tiradentes, elaborada pelos artistas e profissionais presentes, contendo propostas de melhoria às autoridades responsáveis pelo audiovisual, inclui uma passagem relacionada ao país vizinho: “Não podemos deixar de manifestar apreensão com o futuro da Argentina e prestar solidariedade à população e aos trabalhadores do audiovisual do país”.

Em paralelo, durante um debate intitulado Além do espelho: programar filmes latino-americanos na América Latina e na Europa, dois representantes argentinos compartilharam suas experiências: Paola Buontempo, programadora do Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata, e Walter Tiepelmann, coordenador e diretor artístico do Festival Internacional de Documentários de Buenos Aires. O evento mineiro também conta com a presença do ator argentino Juan Manuel Tellategui, radicado no Brasil. Ele atuou em projetos como Águas Selvagens (2020), 30 Anos Blues (2020) e Divã a Dois (2015), além das séries Chuteira Preta e Toda Forma de Amor.

O Meio Amargo aproveitou para conversar com os três a respeito da situação do cinema argentino.

O ator argentino Juan Manuel Tellategui. Foto: Léo Fontes / Universo Produção.

Desinformação e fake news

Tiepelmann recorda que, no instante em que a conversa era gravada na cidade mineira, os argentinos tomavam as ruas da capital. “Neste exato momento, o coletivo Unidos pela Cultura, que inclui o Cinema Argentino Unido, faz uma caminhada. Isso porque está sendo debatida uma lei que modifica praticamente todos os aspectos do sistema político do país, envolvendo uma reforma constitucional . Dentro deste capítulo, existe uma área sobre a cultura onde se pretende retirar o financiamento do INCAA e retirar a autarquia”.

“A taxa paga pelas televisões deixaria de ir ao cinema, e seria transferida diretamente para o tesouro nacional, ou não teria transferência nenhuma. Também existe uma questão de direitos autorais, que alimentam várias áreas da cultura, especialmente o cinema. Estamos enfrentando um projeto de aniquilação por parte do Estado”.

Buontempo insere a crise dentro de um contexto mais amplo de ataque à cultura nacional:

“Hoje, debatemos este projeto de retirada do financiamento, com intuito de esvaziar por completo as instituições. De alguma maneira, a maioria destas instituições possui um sistema autárquico, financiado com impostos próprios ao setor. Este é um modelo bastante exemplar de funcionamento. O Estado gerou leis capazes de tributar, no intuito de promover o enriquecimento do setor e fomentar novas produções”.

Os ataques atuais surgem no contexto de total desinformação, ou uma campanha de informações falsas, para provocar o desprestígio das instituições nos meios de comunicação.

“Os ataques atuais surgem no contexto de total desinformação, ou uma campanha de informações falsas, para provocar o desprestígio das instituições nos meios de comunicação, o que inclui o setor cultural. Por isso, temos uma missão bastante complexa diante desta falta de conhecimento e de empatia em relação ao trabalho cultural. É um momento social bastante delicado, para além da dimensão econômica. É difícil debater quando passa a se questionar para quê serve a cultura. São questionamentos antigos, de outros tempos. Mas nos encontramos dentro desta discussão”.

“Discutir o estado atual do cinema argentino implica levar em consideração os dilemas presentes enquanto se planeja o futuro. Que destino podemos ter quando resolvermos o dilema deste projeto de lei? Precisamos pensar a longo prazo. Mesmo assim, existe certo alívio, porque o ano de 2023 foi muito precioso para o cinema argentino — digo isso não apenas pelo reconhecimento em prêmios, que costumam ficar mais em evidência”.

“Mas destacamos estas conquistas para que as pessoas compreendam o papel de destaque em que se encontra o cinema argentino no mundo, que não é nada desprezível. Mesmo assim, não reduzo nossas conquistas a isso: as produções nacionais tiveram ótimas bilheterias nas salas de cinema, além de bom acolhimento pelo público. Estas são áreas complexas, de distribuição e exibição. É claro que estamos numa situação difícil, mas pelo menos os filmes puderam circular”

Walter Tiepelmann, coordenador e diretor artístico do FIDBA. Foto: Léo Fontes / Universo Produção.

Coproduções — uma alternativa?

Devido ao contexto binacional, a possibilidade de coproduções surge no debate enquanto possibilidade de driblar eventuais debilidades econômicas e fortalecer laços culturais.

“Eu imagino que a coprodução seja uma alternativa viável para manter a projeção do cinema argentino internacionalmente”, estima Tellategui. “A cultura argentina é muito valorizada no mundo graças ao cinema, então uma saída para as produções, face aos ataques à cultura, seria incentivar as coproduções. É um absurdo ter que justificar a importância da cultura para a identidade de um país. Mesmo em termos econômicos, uma produção audiovisual é capaz de gerar inúmeros empregos diretos e indiretos”.

O representante do FIDBA concorda: “Racionalmente, não há motivos para destruir o cinema nacional. Neste sentido, as coproduções podem ser a grande oportunidade para o Brasil mostrar que é o irmão mais velho. São as condições ideais para isso. Seria lógico que, nesse momento, a gente reforçasse as coproduções, até porque existem acordos previstos neste sentido entre a Ancine e o INCAA. Há muitas ferramentas possíveis”.

E vai além: “De qualquer modo, sabemos que o cinema argentino vai sobreviver. As pessoas vão continuar a fazer filmes. Talvez seja de maneira diferente, e justamente nesta busca por alternativas, entrariam os projetos em coprodução. Seguiremos filmando e fazendo cinema. Não vão nos vencer apenas por eliminarem os meios de financiamento”.  

As coproduções podem ser a grande oportunidade para o Brasil mostrar que é o irmão mais velho. São as condições ideais para isso.

De acordo com o ator, a suposta barreira da língua, alegada com frequência para justificar o baixo número de coproduções entre Brasil e Argentina, não constitui um obstáculo real.

“Acredito que a diferença de língua possa ser uma ponte, ao invés de uma barreira. Pouco tempo atrás, gravei um projeto cuja trama se passava na região da Tríplice Fronteira e, neste caso, a diversidade linguística foi um ganho. Tínhamos elenco falando em português e espanhol, destacando a ligação muito natural entre as duas línguas nesta região”.

“Não podemos esquecer que o Brasil também pertence à América Latina. Seria um erro — geográfico, inclusive — pensar no país enquanto organismo independente dentro de um contexto latino. A multiplicação de coproduções serviria como maneira de aproximar os dois países e culturas. Além disso, potencializamos as especificidades de cada um deles”

Paola Buontempo, programadora do Festival de Mar del Plata

O papel dos festivais de cinema

Enquanto os argentinos marcham, o que podem fazer, concretamente, os festivais de cinema para frear o desmonte cultural? A diretora artística do Festival de Mar del Plata traça a dimensão destes eventos:

“Os festivais de cinema são espaços de aprendizado para os artistas e para os espectadores. Eles também formam um público, permitindo o acesso a certas propostas e ampliando o imaginário do cinema. O acesso à cultura é uma política de Estado e, como tal, não consegue garantir o acesso igualitário a todos. No Brasil e na Argentina, por exemplo, o acesso ao cinema é muito diferente para alguém que mora na capital, nas periferias ou nas cidades interioranas”.

Este também é um trabalho importante a fazer. Quando discutimos a defesa da cultura, precisamos pensar igualmente em pessoas que sempre foram afastadas do contato com as produções artísticas. Nesse caso, compreende-se o desinteresse. Na Argentina, as políticas públicas voltadas para esta área nunca são suficientes. Parte considerável da população já introjetou a ideia de que o cinema é algo para poucos. Precisamos rever a maneira como os filmes circulam, em quais espaços”.

“Neste momento, como nos encontramos numa situação quase primária de subsistência, talvez estes aspectos pareçam pertinentes a uma discussão posterior. Mas não podemos nos esquecer que o financiamento da cultura não se traduz num ganho imediato. Não salva a vida de ninguém, embora seja muito importante. A discussão também passa pela empatia, e pela compreensão da necessidade que as artes continuem. Em uma lógica capitalista, sempre precisamos reforçar o sentido e a importância da cultura. Agora, o desconhecimento aprofunda a desvalorização das produções nacionais”.

“É claro que a mobilização da classe artística tem poder”, concorda Tiepelmann. “No entanto, estamos diante de um grupo de pessoas perversas. Então, é difícil. No Festival de Cinema Documental, o Brasil foi o país convidado, e fizemos um encontro para discutir como sobreviver ao fascismo. Isso aconteceu em outubro de 2023, sem saber o que poderia de fato acontecer, e que agora está acontecendo. Os brasileiros nos contaram quais estratégias adotaram, e nos deram dicas. Assim, poderíamos nos preparar. Neste sentido, o aprendizado surte efeitos claros”.

A cultura constitui um direito da população. O povo precisa exigir de seus governos que a cultura seja acessível e representativa.

Mas não podemos desprezar a dimensão nociva do discurso deste campo irracional. Os detratores do cinema argentino encontram rapidamente uma forma de atacar os profissionais. Atacaram até Adrián Suar, que produz filmes comerciais, para a televisão, e mesmo outros profissionais — alguns deles morando em Hollywood, muito longe de serem trotskistas. Ainda precisamos entender o funcionamento da engrenagem maligna das fake news. De qualquer modo, estamos de olho no que acontece no Brasil para entender de que maneira responder a isso. Por exemplo, aqui na Mostra de Tiradentes, existe um gigantesco mural indicando que o evento gera uma quantidade imensa de empregos”.

“Por que não colocamos algo semelhante no início dos filmes, com uma cartela indicando quantos empregos foram gerados, e o impacto econômico desta produção? Precisamos discutir com informações, e sair de estratégias confortáveis. Agora precisamos entender que não estamos numa sociedade normal, e não basta indicar que um filme argentino precisa ser defendido simplesmente por ser um filme argentino. Temos uma extensa tarefa educativa para rebater o discurso de que seríamos parasitas do dinheiro do Estado, retirando recursos de criancinhas na fila da quimioterapia. Isso não tem sentido”.

Tellategui conclui: “Estes grandes ataques à cultura acontecem porque parte da população, em certa medida, se alinha com este tipo de pensamento. Estimam que a cultura é um acessório elitista, que não faz parte da identidade de um país e, portanto, não tem função concreta no cotidiano. Penso na fala da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, aqui em Tiradentes. Ela lembrou que a cultura constitui um direito da população. O povo precisa exigir de seus governos que a cultura seja acessível e representativa, e que todo investimento nesta área retorne à população enquanto patrimônio”.

A 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes vai até o dia 27 de janeiro, trazendo 145 filmes, entre curtas e longas-metragens.

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