A Sindicalista (2022)

A mulher e os lobos

título original (ano)
La Syndicaliste (2022)
país
França, Alemanha
gênero
Drama, Suspense
duração
121 minutos
direção
Jean-Paul Salomé
elenco
Isabelle Huppert, Grégory Gadebois, Yvan Attal, Marina Foïs, Pierre Deladonchamps, Alexandra Maria Lara, François-Xavier Demaison, Mara Taquin, Aloïse Sauvage, Gilles Cohen
visto em
Cinemas

O título deste filme pode despertar uma falsa impressão. No Brasil, onde Maureen Kearney é pouco conhecida, a tradução literal do nome francês sugere um drama social a respeito de relações trabalhistas, algo que a França realiza com frequência, e muito bem. Ora, o longa-metragem praticamente ignora as conversas da protagonista com os funcionários da Areva, empresa de energia nuclear onde trabalha. Com exceção de uma curta reunião com operários no início, e outra na conclusão, o foco se distancia da preservação de empregos de uma das maiores multinacionais do país face à ânsia privatista dos acionistas.

A luta de empregados contra patrões se converte em objetivo central unicamente caso o estupro da heroína seja considerado uma metáfora da exploração laboral. A opção se justifica: através do caso real, marcado pela violência destinada a calar a líder sindical em sua cruzada contra os dirigentes, estaria simbolizada uma forma de martírio dos operários, tendo seus corpos violados pela ganância de homens predadores. Esta é uma tese forte, talvez um pouco forçada, ainda que legítima em segundo plano.

À primeira vista, no entanto, resta a jornada de uma mulher estuprada desde a cena inicial. O cineasta Jean-Paul Salomé certamente não alivia a tarefa para o espectador, confrontado na introdução ao anúncio e à imagem desta violação bárbara, o que inclui a letra “A” (da empresa Areva) retalhada a faca no ventre da mulher, e o cabo de uma faca introduzido na vagina. As investigações começam rapidamente e, em menos de trinta minutos (de duas horas de projeção), as incontáveis ameaças nos aproximam de um intenso suspense psicológico.

Este é um dos aspectos mais interessantes de A Sindicalista: a percepção de que a verdade seria secundária em relação à nossa interpretação dos fatos.

O roteiro surpreende pela agilidade em introduzir uma dúzia de reviravoltas. A trama avança com a rapidez típica das adaptações literárias que buscam incorporar passagens demais numa única aventura. Assim, Maureen é pressionada no trabalho, perseguida, violentada. Começam as investigações, suscitando acusações de que ela teria forjado o próprio estupro para chamar a atenção, apesar de sequências apontando as fragilidades desta última tese. Ela começa a suspeitar da boa vontade de sua maior aliada (Marina Foïs), descobre segredos a respeito da filha, sofre um acidente no qual fere o ombro, torna-se vítima de um assalto no trânsito… 

É possível que a dança de idas e vindas no tempo e a quantidade de argumentos e contra-argumentos resultem numa obra inchada até demais. No entanto, Salomé busca condensar os fatos e as especulações, desprezando qualquer hierarquia entre eles. Ao invés de apontar no final “o que realmente aconteceu”, como de costume nas encenações de crimes verídicos (até hoje, não se sabe ao certo quem teria cometido a violência sexual), prefere supor que a verdade seja multifacetada, impossível de obter. Restaria, portanto, a possibilidade de contemplar um intenso jogo de absurdos e manipulações.

Este é um dos aspectos mais interessantes do longa-metragem: a percepção de que a verdade seria secundária em relação à nossa interpretação dos fatos. Ao cabo de tantas alternâncias da justiça, torna-se impossível determinar o que realmente ocorreu. Vence a melhor narrativa, a versão que contemple as vontades das pessoas no poder (juízes, promotores, a mídia, a opinião pública). Moldam-se os indícios e provas às necessidades de cada instância, para apresentar Maureen enquanto vítima de um sistema perverso, ou uma mulher enlouquecida, em busca de simpatia para as suas causas. O roteiro navega com habilidade de uma tese à seguinte, evitando descredibilizar por completo qualquer uma delas.

Outras questões merecem destaque: em primeiro lugar, a decisão de manter nomes verídicos de empresas e pessoas. O texto cita Nicolas Sarkozy, a eleição do malfadado François Hollande, o ex-ministro Arnaud Montebourg (devidamente inocentado e protegido das acusações na reta final), além de Areva e de acontecimentos reais envolvendo o escândalo das negociações fraudulentas entre o poderio nuclear francês e os industriais chineses. Letreiros na conclusão nos lembram que, assim como Maureen previa, milhares de empregos foram perdidos nessa fusão responsável por beneficiar, principalmente, os chineses. Salomé insiste que o filme seja lido enquanto comentário de uma situação específica da história francesa recente, ao invés de um conto geral a respeito de relações de poder.

O discurso do tipo “ela tinha razão” busca fomentar a veracidade de suas falas a respeito da agressão sexual. Posto que falou a verdade no âmbito do trabalho, a heroína se tornaria uma pessoa digna de crença, inclusive em sua defesa a respeito do estupro. Em paralelo, este olhar pró-feminista visa demonstrar que os homens seriam mais frágeis diante de pressões do que as mulheres — vide o mal-estar súbito do chefe Luc Oursel (Yvan Attal) após uma pequena pressão do ministro, ao contrário da solidez implacável de Maureen. A mulher é agredida, humilhada, ridicularizada, assaltada, ameaçada, e até recebe uma cadeirada em sua direção.

Isabelle Huppert encarna esta figura com o senso de retidão que lhe é peculiar. A atriz sempre demonstrou fascinação por heroínas moralmente ambíguas, sobretudo aquelas capazes de ser interpretadas como vítimas e algozes ao mesmo tempo. Neste papel, ela atenua alguns gestos histriônicos que se tornaram comuns (a contorção dos lábios, o queixo erguido para demonstrar soberba) e evita carregar o tom em expressões faciais e corporais. A contenção a torna mais misteriosa em suas intenções — torna-se difícil ler exatamente o que a mulher pensa e como se sente, algo fundamental à densidade moral desta fábula. Em paralelo, estabelece uma conexão interessante com Elle, outro filme no qual a atriz interpreta uma mulher de poder, estuprada em sua casa. No entanto, na obra de Verhoeven, a protagonista desenvolvia uma fascinação erótica por seu agressor.

Aos amantes do cinema francês, existe um deleite especial em vê-la atuar com alguns dos maiores intérpretes de sua geração. Marina Foïs é grandiosa. Na figura de outra mulher dúbia (a melhor amiga que talvez esteja manipulando fatos para se preservar), oferece os instantes de jogo cênico mais potentes do longa-metragem. Attal se sobressai na figura do pequeno homem de poder, enquanto Grégory Gadebois se esforça para transbordar de afeto pela esposa, funcionando como instante de respiro e humor em meio ao mar de tensão. Ele encarna o único personagem superficial e “funcional” do projeto, na figura de um homem apenas bondoso e gentil, atenuando a mesquinhez da parcela masculina e comprovando que Maureen pode ser amada.

A conclusão possui seus excessos e significados sublinhados em excesso. O olhar da protagonista à câmera, interpelando o espectador e intimidando-nos, resulta de um esforço tipicamente novelesco. A narrativa acerca do estupro anterior de Maureen também careceria de refinamento, assim como o desfecho fornecido a alguns personagens (a fascinante Anne Lauvergeon, em particular). Mesmo assim, A Sindicalista se encerra na condição de fábula sombria do mundo empresarial e masculino. Remete a uma versão contemporânea da Chapeuzinho Vermelho, cercada por lobos, mas sem lenhador para salvá-la. A garota perdida na floresta precisa, desta vez, encontrar uma forma de se defender sozinha.

A Sindicalista (2022)
7
Nota 7/10

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