A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, que Viveu Vinte e Oito Anos Sozinho em uma Ilha e Disse que Era Dele (2023)

O avesso do colonialismo

título original (ano)
Het leven en de vreemde verrassende avonturen van Robinson Crusoe die acht en twintig jaar helemaal alleen op een bewoond eiland leefde en zei dat het van hem was (2023)
país
Bélgica
gênero
Comédia, Fantasia, História, Experimental
duração
75 minutos
direção
Benjamin Deboosere
elenco
Oriana Ikomo, Bernice Leming, Blanche Pembe
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

A estranheza do título longuíssimo diz muito a respeito da adaptação do mito de Robinson Crusoé. O nome soa absurdo, engraçado, mas também inesperadamente próximo à criação original de Daniel Defoe — batizada, em tradução livre, de A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, de York, Marinheiro que Viveu Vinte e Oito Anos Sozinho numa Ilha Deserta na Costa da América, Perto do Grande Rio Oroonogue; Tendo Encontrado a Terra Após um Naufrágio, Enquanto Todos Seus Homens Morreram, Exceto por Ele. Com a Narrativa de Como Ele Foi Estranhamente Solto por Piratas.

Esta releitura iconoclasta de 2023 parte do princípio que o espectador já conhece as bases da trama, recontada de inúmeras maneiras em filmes, livros e séries. Por isso, não teria a necessidade de se ater a explicações de base, muitas delas descritas no título. Em paralelo, despreza a seriedade e o heroísmo de inúmeras representações que reforçam o imaginário racista dos canibais negros contra o valente marinheiro branco. Após séculos de discursos acerca do corajoso conquistador enfrentando criaturas incivilizadas, seria necessário modernizar este ponto de vista herdeiro do pensamento do século XVIII, quando foi escrito o texto original.

Desde o princípio, o espectador é lançado num banquete de estranhezas. As atrizes principais apresentam a si mesmas, encarando diretamente a câmera e o espectador. Dizem quais personagens vão interpretar e revelam o resto da “nossa bela equipe”, com claquetes em punho. Curiosamente, elas o fazem em libras, com a ajuda de legendas para a compreensão dos espectadores que ignoram esta linguagem. Ao mesmo tempo, há captação de som direto, o que inclui a presença de ruídos de passos e do vento. Ou seja, havia condições de captar as falas sonoras — esta foi uma escolha para romper com expectativas por meio da língua.

O cineasta rompe relações de referencialidade entre som e imagem; inverte relações culturais ao propor heroínas negras e canibais brancos, até estabelecer um pastiche do colonialismo.

As palavras se tornam fundamentais tanto por sua presença quanto pela ausência. O périplo do navegador, interpretado por uma mulher negra, começa com legendas desprovidas de som referente. Isso significa que palavras surgem na tela, em reação aos acontecimentos (“Porra!”, “Canibais!”), embora nenhuma fala saia da boca da atriz, nem seja sugerida em voz off ou over. Adiante, frases começam a surgir, em volume baixíssimo e de maneira esparsa na narrativa. Os idiomas se alternam entre francês, flamengo e inglês. 

Os sons diretos se tornam cada vez mais claros rumo à conclusão, ainda que nunca atinjam a naturalidade de um longa-metragem convencional. Conforme a protagonista se acostuma à ilha, os sons começam a sair de sua boca. Existe uma noção de aprendizado e domesticação ao cenário selvagem, que talvez possa ser lida como provocação à noção de primitividade do texto de Defoe. Desta vez, quem menos consegue se expressar é o próprio Robinson Crusoé. Já as cabras se comunicam muito bem entre si, constituindo família e emitindo balidos sonoros, cujo significado é legendado ao espectador.

O mesmo pode ser dito da trilha sonora, que invade a aventura gradualmente, até adquirir sua plena potência na cena em que Robinson é coroado pela natureza, em trajes míticos, sob uma chuva de bolhas de sabão. Sexta-Feira, também interpretado por uma jovem negra, a observa atentamente na coroação e exibição solitária. O teor inicialmente estranho se torna kitsch, levemente erótico (as duas mulheres dormindo lado a lado, com poucos trajes, construindo uma intensa troca de olhares). As cores se saturam, ao passo que as ações se banalizam (vide a algema retirada sem esforço pela prisioneira, e os canibais rapidamente imobilizados sobre a areia da praia).

Como resultado, o diretor Benjamin Deboosere oferece uma obra inesperada, pitoresca, colorida. Vista pelo objetivo de subverter expectativas e brincar com o potencial da representatividade dos clássicos, cumpre o seu objetivo. O cineasta rompe relações de referencialidade entre som e imagem; inverte relações culturais ao propor heroínas negras e canibais brancos, até estabelecer um pastiche do colonialismo. Assume sua artificialidade, seu teatro das formas, e também o despojamento de um projeto amador, e orgulhoso de sê-lo. 

Tamanha despreocupação, no entanto, pode aproximar a obra de uma traquinagem entre amigos, uma coletânea de cenas opacas e desconectadas entre si. Em outras palavras, um gesto retórico, no qual demolir as regras da literatura se torna um objetivo em si próprio, importando pouco o que se ergue por cima dos escombros. Os criadores oferecem uma comédia quase aleatória, onde os conflitos se sucedem sem peso nem verossimilhança, sem causa nem consequência. Ocorrem como na vontade pulsional de uma criança inventiva: e se de repente as cabras falassem? E se aparecesse um segundo letreiro para os bichos? E se os diálogos alternassem entre várias línguas? 

O brainstorming se materializa, para o bem ou para o mal. A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, que Viveu Vinte e Oito Anos Sozinho em uma Ilha e Disse que Era Dele se converte numa obra de oposição, contra os cânones, contra os clássicos, contra regras da arte, contra um imaginário racista e decadente. Sua oposição é claríssima, e funciona na linguagem jocosa escolhida. No que diz respeito à visão política, em contrapartida, o saldo se prova mais singelo. Diz-se muito com o desprendimento, porém pouco pela construção de personagens, e mesmo a liberdade das formas. 

Passado o estranhamento inicial, a experiência terá menos estímulos a oferecer ao espectador pelos 60 minutos restantes, chegando inclusive a se arrastar no terço central, quando o diretor se recusa a subverter novamente este caminho para oferecer algo diferente da pantomima, da performance e da teatralidade lúdica, quase infantil. O problema da ruptura enquanto meio e finalidade se encontra na necessidade de continuar subvertendo. Sem a quebra constante, a nova linguagem se acomoda, se domestica, e deixa de provocar os sentidos. A insubmissão enquanto liberdade pode se transformar, ironicamente, em uma forma de prisão.

A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, que Viveu Vinte e Oito Anos Sozinho em uma Ilha e Disse que Era Dele (2023)
5
Nota 5/10

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