Abiding Nowhere (2024)

O elemento dissonante

título original (ano)
Wu Suo Zhu
país
Taiwan, EUA
linguagem
Experimental
duração
79 minutos
direção
Tsai Ming-Liang
elenco
Lee Kang-Sheng, Anong Houngheuangsy
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

O caminhante chega aos Estados Unidos. Personagem de uma longa série de projetos audiovisuais de Tsai Ming-Liang, o homem silencioso (Lee Kang-Sheng) passeia pelas ruas norte-americanas, ao lado de monumentos e edifícios. Ele mantém uma caminhada rigidamente orquestrada, em ritmo idêntico, passos de mesmo tamanho, pés tocando ou se soltando do solo com parcimônia, dedo após dedo. Ele jamais interage com nenhum passante, nem se dirige a um objetivo particular. Move-se pelo imperativo do movimento.

Trata-se de um protagonista misterioso, julgando pelas convenções do cinema clássico-narrativo. Afinal, ele não possui passado, origem, interesses, conflitos (no sentido de objetivos de difícil concretização, por esbarrarem nas vontades de outros). Inútil questionar o porquê deste deslocamento em particular, nesta cidade, ao invés de localizações distintas. Este “herói” dispensa arcos narrativos, transformações internas e outros elementos que fariam dele uma figura de fácil identificação por parte do espectador.

A proposta discretamente radical de Tsai Ming-Liang se assemelha a uma ginástica dos sentidos, um exercício de percepção. 

Abiding Nowhere representa uma experiência conceitual, do tipo que ocupa prioritariamente as galerias e museus, em detrimento dos circuitos comerciais, ou mesmo nos festivais de cinema. (A Berlinale o exibiu numa sessão especial, em salas anexas, longe do prestigioso Palácio principal). Pretende explorar o tempo e a noção de espectatorialidade, solicitando um espectador ativo para decifrar, ou acompanhar imagens que não foram concebidas para a nossa diversão, nem para transmitir uma mensagem em particular.

No cinema, os espectadores se contorciam na cadeira. Alguns dormiam, outros erguiam os ombros num gesto de “É só isso?”. Sim, é só isso. O monge caminha por diversos lugares, tranquilamente, enquanto as pessoas seguem suas vidas, alheias à presença do tipo tão chamativo (pois diferente, vestido em trajes religiosos vermelhos) quanto invisível (pois inerte em seu percurso íntimo, sem cruzar olhares com ninguém). Há um caráter disruptivo no gesto de levar a letargia ao caos de um centro urbano. 

Os passos do protagonista numa estação de metrô fazem dele praticamente um alienígena, um ser de outra espécie. Adiante, duas mulheres o acham divertido, e gravam vídeos do personagem fictício (encarado, por elas, como documental), provavelmente para exibirem aos colegas, ou publicarem nas redes sociais. Tanto a perspectiva cúmplice e distanciada de Tsai Ming-Liang quanto a mirada fetichista das passantes se apropriam do corpo que não pertence àquela paisagem. Sua simples existência, na contemporaneidade, constitui uma provocação.

Ao cineasta, o conceito autoimposto representa um desafio considerável. Como propor um longa-metragem de 80 minutos, composto unicamente pelo caminhante mudo? Ora, o cineasta malaio não possui nenhum prazer em entediar espectadores, nem esticar a temporalidade pelo mero direito de fazê-lo. Ele demonstra uma preocupação estética fundamental em termos de ritmo e “narrativa” (compreendida aqui pelo encadeamento de imagens, e pelo modo como se comunicam para criar uma jornada coesa). 

A mise en scène alterna os ângulos e posicionamentos em relação ao homem. Embora sempre instaure o dispositivo à distância, de modo a não constrangê-lo, nem intervir no meio filmado (os transeuntes nunca percebem a existência de um diretor pelos arredores), a direção de fotografia obtém variações importantes. Ora torna o corpo minúsculo, diante da suntuosa paisagem, ora efetua um zoom-in permitindo enxergar seu rosto, além do trabalho dos músculos e pernas. Às vezes o observa de frente, e às vezes, de lado. Na conclusão, a montagem introduz pela primeira vez uma trilha sonora, que se equilibra com os sons ambientes, até substituí-los por completo.

Além disso, o roteiro cria um duplo para o monge. Anong Houngheuangsy é um personagem urbano que também se desloca, ainda que de maneira direcionada. Ele visita um museu para admirar as obras de arte; prepara a refeição que lhe serve de almoço. Pelas roupas e pelo espaço onde circula, constitui uma figura pertencente à cidade, integrado ao seu funcionamento. Em contrapartida, tampouco fala ou interage com outras pessoas. Funciona enquanto composição análoga e espelhada àquela do andarilho. A montagem chega a uni-los simbolicamente, quanto este último percorre a galeria de arte atravessada anteriormente por Anong.

Curiosamente, Abiding Nowhere constitui um filme de ação, no sentido original do termo. Os personagens, desprovidos de psicologia, resumem-se aos seus corpos e sua intromissão no meio. Existem somente a partir do momento em que fazem algo, atravessam espaços e se tornam vistos pelos olhos de terceiros. Até nos instantes em que o andarilho passa completamente despercebido pela multidão, o ponto de vista de Tsai Ming-Liang (e, por consequência, o nosso, enquanto espectadores) se foca exclusivamente nele. Transformamo-nos no fotógrafo que, em frente aos escombros, percebe a beleza de uma pequena flor à sombra.

Há uma proposta muito especial de levar centenas de pessoas ao cinema para assistirem a um monge caminhar. Pessoas paradas, em silêncio, observaram o sujeito andar, igualmente em silêncio. Somos cúmplices de um gesto efetuado apesar de nós, ignorando nossa existência. O posicionamento do olhar não se situa nem junto ao andarilho, nem o espiando, escondido. Ainda que não encare a objetiva da câmera, o homem certamente compreende a presença do aparato cinematográfico à sua volta. Estamos simultaneamente escondidos e onipresentes, solidários, porém desconectados desta figura particular.

O resultado se assemelha a uma estranha forma de treinamento do olhar. Conforme nossa geração se acostuma às imagens aceleradas dos computadores e telefones celulares, dificultamos a concentração em um elemento específico durante muito tempo. Retornamos à taxa de concentração ínfima das crianças — vide as frequentes reclamações de pessoas que se dizem incapazes de assistirem a um filme de duas horas, ou lerem um livro inteiro. A proposta discretamente radical de Tsai Ming-Liang se assemelha a uma ginástica dos sentidos, um exercício de percepção. 

A experiência não é fácil: demanda nosso esforço, nossa capacidade de decifrar aqueles estímulos e nos adequar a um ritmo particular. Trata-se de uma sessão voluntariamente desconfortável, exigente em relação ao seu espectador — até por estimar que este seria capaz de ir em direção às imagens. Esta forma de cinema confia no público, e na sua habilidade de ultrapassar os incômodos tradicionais diante de algum desafio (o tédio, a confusão, as dúvidas). 

O cineasta desafia seu interlocutor enquanto gesto de confiança nele. A imersão nesta proposta se torna muito mais satisfatória do que a mera passividade diante de imagens que pulam, chacoalham para todos os lados, gritam em sons e música para impedir que o espectador se distraia e recorra à tela do celular. Existe certo prazer de irmos ao encontro do diretor, naquele patamar distinto em que se encontra em termos de maneira de perceber o mundo.

Abiding Nowhere (2024)
7
Nota 7/10

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