Aquaman 2: O Reino Perdido (2023)

A gravidade inconsequente

título original (ano)
Aquaman and the Lost Kingdom (2023)
país
EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Islândia
gênero
Fantasia, Ação. Aventura
duração
124 minutos
direção
James Wan
elenco
Jason Momoa, Patrick Wilson, Yahya Abdul-Mateen II, Amber Heard, Nicole Kidman, Randall Park, Temuera Morrison, Dolph Lundgren, Martin Short
visto em
Cinemas

Os méritos e fraquezas de Aquaman 2: O Reino Perdido se devem menos ao próprio filme do que aos moldes em que se inseriu o filão de super-heróis. A exemplo dos projetos anteriores da DC, e mesmo aqueles da Marvel (cada vez mais parecidos), este precisa apelar ao público jovem, mas também adulto; norte-americano, porém internacional; possuir tons graves e dramáticos intercalados com piadas leves; conectar a trama às anteriores, mas abrir novas vias; opor o bem ao mal, enquanto garante a vitória do super-herói e a paz mundial.

Caso alguém não tenha assistido às aventuras anteriores, resumem-se rapidamente os dilemas da jornada precedente, antes de lançar o sujeito forte, de uniforme colado ao corpo, rumo ao próximo vilão. O marketing promete que este será o maior perigo já enfrentado por ele, face a um sujeito mais rancoroso do que nunca. Os diálogos repetem que a Terra está em perigo, e a humanidade corre risco de extinção. Mas não se preocupe: 120 minutos depois, o sujeito imbatível será batido, e o planeta resiste.

Parte das referências soam clássicas, shakespearianas: irmãos guerreando contra irmãos, filhos vingando a morte do pai, brigas palacianas pelo trono. Aspira-se a um tom universal, acessível a qualquer cultura, crença, etnia, gênero e ideologia: o mito hollywoodiano do filme total. Afinal, todos temos entes queridos e dilemas familiares, correto? Estranha-se o discurso a respeito de honra e valores inegociáveis em tempos tão fluidos, polarizados, propensos aos ódios de ocasião. É ainda mais estranha a defesa canônica do amor à humanidade em meio à cultura individualista dos norte-americanos.

O perigo inexiste. A Terra nunca tremeu diante de uma ameaça real. Nunca realmente acreditamos que Arthur Curry pudesse sucumbir. Trata-se de um universo inconsequente, aleatório.

De qualquer modo, quanto mais soturno o discurso destas obras, menos verossímeis elas realmente aparentam. Aquaman (Jason Momoa) luta contra o perigosíssimo Arraia Negra (Yahya Abdul-Mateen II), agora munido do poder gigantesco de um tridente. O sujeito maligno ameaça maltratar o filho recém-nascido do super-herói, pelo simples prazer de fazê-lo. Também promete destruir a humanidade inteira, sem pensar que isso talvez o inclua. Os antagonistas de narrativas super-heróicas nada mais são do que chantagistas, brutamontes infantilizados, em constante necessidade de atenção e validação social.

Duas horas depois, surpresa: o bem vence o mal. Há pelo menos cinco cenas em que um personagem está prestes a morrer nas mãos do adversário, munido de algum raio ou adaga afiada. Antes de desferir o golpe fatal, este último dispara um discurso pomposo acerca de suas intenções (a vítima ainda não o sabia?). Um segundo antes da morte, o indivíduo é salvo por alguém que surge pelas costas do inimigo, desfere um golpe ou interrompe uma arma voando pelos ares. O dia está salvo mais uma vez. O dia sempre estará salvo.

No final, o perigo inexiste. A Terra nunca tremeu diante de uma ameaça real. Nunca realmente acreditamos que Arthur Curry pudesse sucumbir. Caso morresse, alguma magia conveniente poderia trazê-lo de volta à vida. Se a Marvel destrói metade da humanidade num estalar de dedos, pode ressuscitá-la com igual facilidade, caso estas empresas estimem necessário fazê-lo. Diante das fracas bilheterias das produções de super-heróis, empresários cogitam resgatar o Homem de Ferro, a Viúva Negra. Eles já morreram, certo? Sem problemas. Voltam a viver. Sempre podem voltar a viver.

Trata-se de um universo inconsequente, aleatório. A qualquer momento pode aparecer um novo adversário, nova poção, novo artefato ou invenção para representar uma ameaça e retirar o herói de seu descanso. Ele sempre se encontra em casa, em família, torcendo para não ser chamado. Mas o destino não o deixa repousar. Os vilões assumem a função do chamado imperativo ao trabalho. O herói virtuoso precisa se colocar no espaço público, provar-se pai, marido, provedor, protetor, forte. Estes hinos à masculinidade também constituem uma ode à conservação do status quo, à lógica capitalista e meritocrática do arranjo social. 

Serão sempre indivíduos destemidos, vindo ao socorro da humanidade opaca e anônima; jamais uma organização coletiva de trabalhadores, de pessoas “comuns” — cabe a histórias muito mais corajosas, como A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets (2023), tal pensamento marxista. As produções de super-heróis, embora repaginadas para soarem descoladas, modernas, inclusivas, ainda transparecem o desejo de uma salvação providencial por parte de um sujeito forte, especial, escolhido para tal tarefa. O poder de mudar o mundo não cabe a todos nós, ao indivíduo qualquer. Precisamos esperar que o sujeito exemplar venha ao nosso socorro. 

A passividade deste mundo reside em seu caráter cíclico — surge um inimigo, ele ameaça o protagonista; é morto, e então seu sucessor aparece, e assim por diante. Aquaman poderia ter quinhentas aventuras, caso os lucros o justificassem. Mas dificilmente justificarão. Há outros heróis, com características levemente diferentes, encarregados, em função semelhante, de salvar o mundo. Um voa, outro nada; um usa roupas justas, outro possui uma armadura; um controla a mente, o outro combate bandidos à noite. Ao final do dia, equivalem-se, a exemplo de modelos de um mesmo produto, em marcas concorrentes. O capitalismo também se aplica a esta lógica do audiovisual feito no atacado.

Não há nada propriamente errado em Aquaman 2: O Reino Perdido. Os conflitos surgem no instante exato em que deveriam; o adversário confessa seus planos na hora oportuna; as piadas aparecem logo depois de uma gravidade extrema; o clímax reúne todos os personagens numa grande batalha; o desfecho promete alívio e recompensa emocional através da enésima vitória da família patriarcal. 

Os efeitos visuais se mostram bastante competentes para as cenas subaquáticas — muito melhores do que a catástrofe de A Pequena Sereia, por exemplo. Os atores se provam competentes, no nível de seriedade que as grandes produtoras exigem deles. Patrick Wilson desfere frases risíveis como quem declama, de fato, um texto de Shakespeare. Jason Momoa leva xixi na cara do bebê brincalhão com o comprometimento de uma Sessão da Tarde. Yahya Abdul-Mateen II arfa, resmunga, enche a boca para ameaçar o herói de morte. 

James Wan tampouco se prova um mau diretor. Possui senso de estilo, permite uma ou outra cena de exploração interessante dos espaços, perdidas num mar de previsibilidade. Os problemas ultrapassam as competências deles, e de centenas de outros profissionais envolvidos. Os defeitos provêm da formatação extrema desta espécie de produto, após mais de quinze anos testando e aperfeiçoando as regras do cinema de heróis. Não existe uma vírgula fora do lugar. Nenhum risco, ousadia, ou tentativa de levar o formato a novos rumos. O projeto contenta-se em ser exatamente o que se esperava dele.

Neste sentido, desaponta enquanto obra de arte. Reúne centenas de milhares de dólares, e centenas de profissionais qualificados, para realizar algo que soaria produzido por uma Inteligência Artificial, um algoritmo. Uma arte sem arte, um produto tão empacotado, industrializado, comprimido a vácuo, que perde seu valor de encanto, de identificação, de pathos. Aquaman 2: O Reino Perdido soa como um pacote de biscoito gourmet, de embalagem brilhosa, gosto artificial de chocolate, aroma artificial de baunilha, excesso de açúcar, de gordura, de sal. Mas ainda será o primeiro produto a atiçar os olhos das crianças e dos passantes apressados entre as fileiras do supermercado. Seu único mérito, dentro da indústria voraz, reside no fato de ser visto.

Aquaman 2: O Reino Perdido (2023)
5
Nota 5/10

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