Arcadia (2024)

A vida dos mortos

título original (ano)
Arcadia (2024)
país
Grécia, Bulgária, EUA
gênero
Drama
duração
99 minutos
direção
Yorgos Zois
elenco
Vangelis Mourikis, Angeliki Papoulia, Elena Topalidou, Nikolas Papagiannis, Vangelis Evangelinos
visto em
74º Festival de Berlim (2024)

Arcadia começa com uma relação de morte. Yannis (Vangelis Mourikis) é chamado ao necrotério para identificar um corpo. No banco de trás, a esposa dorme e, depois, acorda assustada. O homem vai em direção à morte, na necessidade (pragmática e institucional) de confrontá-la. Este movimento representa o projeto na totalidade: o caminhar triste e inevitável rumo ao confronto com o luto. Embora tentem fugir do tema, estes adultos precisam, mais cedo ou mais tarde, aceitar sua sina.

Já os mortos não precisam ir em direção aos vivos, pois permanecem presos a estes. O cinema está muito acostumado aos relatos de pessoas amarguradas pela perda um ente querido. Ora, o longa-metragem grego efetua o caminho oposto, narrando a morte pela perspectiva daqueles que partem, e ainda observam o pesar de seus maridos, namorados e pais. Preocupamo-nos bastante com aqueles que ficam; mas quem cuidará dos sentimentos dos mortos?

Pode-se falar num filme de fantasmas, no senso propriamente dito, ou então num filme de espíritos que jamais envereda pela esfera religiosa. Pelo contrário, o diretor Yorgos Zois (que assina o roteiro junto a Konstantina Kotzamani) evita compreender a morte por uma esfera de punição, de golpe do destino ou de caminhar rumo ao paraíso (ou purgatório, ou inferno). As pessoas simplesmente morrem. Pouco importa em que circunstâncias se vão, ou quando faleceram. O término da vida constitui um mero fato com o qual temos de lidar.

Remete ao cinema japonês clássico, capaz de olhar para a morte sem piedade nem senso de espetáculo, revestindo-a de poesia por sua simples inevitabilidade. 

De fato, nada separa esteticamente os vivos dos mortos. Eles andam lado a lado, interagem com espaços e objetos da mesma maneira. Esqueça os halos luminosos, as diferenças de cores, de profundidade de campo, as vestimentas diferentes. Aqui, os falecidos ocupam casas, comem, fazem sexo, frequentam bares. Em outras palavras, vivem normalmente em seu plano específico de existência. Talvez não sejam vistos pelos familiares aos prantos, porém restam visíveis uns pelos outros — e pelo espectador.

Aqui, o público beneficia de um olhar onipotente, onipresente e onisciente. Enxergamos os familiares e seus fantasmas, onde quer que estejam. Embora Zois não nos informe de imediato quem está vivo, e quem está morto, somos os únicos a possuirmos acesso total à galeria de seres que perambulam por estas praias e cidades gregas. O efeito gera certa confusão (há muito mais fantasmas, entre os personagens, do que se imagina no início da sessão), porém a indefinição resulta numa busca voluntária. O filme se diverte em borrar, de propósito, a barreira separando ambos os planos.

A principal, e melhor ideia deste projeto, consiste na sugestão de que os vivos assombram os mortos, não o contrário. Os pobres seres desencarnados adorariam deixar os espaços que ocupavam anteriormente, no entanto, enquanto seus queridos não concordarem em deixá-los partir, se veem obrigados a orbitar os personagens em crise. Sem saber, nós, os vivos, escravizamos a alma dos falecidos enquanto não realizamos o processo de luto. Assim, o processo psíquico se torna necessário não apenas por nós mesmos, mas em benefício de terceiros. Aceitar a morte se transforma numa dura obrigação moral.

Um símbolo representa a incapacidade de ir embora: os sapatos presos aos pés. Os mortos têm os calçados colados ao corpo — e sofrerão dores ao caminhar, caso estejam de salto alto na hora do falecimento. É curiosa a opção por uma peça de vestuário, um objeto de consumo, conectando duas formas de existência. No entanto, o cineasta transforma este símbolo fundamental em um ícone ao mesmo tempo mágico e banal, simples e complexo. Imagine nunca poder retirar os sapatos após um dia cansativo. Este desconforto visa representar a impossibilidade de repousar em paz.

Arcadia começa com a imagem de pés vestindo um sapato chique, e filma uma imensidade de pés e sapatos pelo caminho. Para uma obra tão focada nesta metáfora específica, surpreende que os pés nus sejam evitados, justamente porque o ponto de vista privilegia aqueles incapacitados de se descalçar. Logo, os mortos não conseguem se libertar, e nem o olhar da direção se vê capaz de deixá-los. Estamos todos presos num círculo de afetos parcialmente abusivo, parcialmente melancólico.

O bar que confere nome ao título representa o local onde as almas se encontram. Lá, elas dialogam, brigam, fazem sexo. Os vivos também frequentam este espaço, sem saber que o local possui muito mais clientes do que podem enxergar. Novamente, o autor prefere iconografias concretas: depois dos sapatos, os bares comuns. Nota-se a vontade de retirar a morte de seu âmbito sobrenatural ou fantasista. Aqui, a magia jamais rompe com o real, pelo contrário. O incômodo diante do projeto provém do teor profundamente corriqueiro com que fantasmas perambulam aqui e acolá.

O roteiro reserva um instante precioso de clímax, quando quatro adultos (dois vivos, dois mortos) se encontram no quarto conjugal, ao lado de uma cama de casal. Ali, revelam suas dores, explicam traumas e cicatrizes passadas (um acidente na vida de Yannis, o vício em medicamentos). Estas justificativas são necessárias a uma obra tão lânguida e vaporosa, no entanto, chegam de maneira abrupta e conveniente demais: após tamanha suspensão dos sentidos, o quarteto simplesmente explica tudo aquilo que o espectador precisava saber. 

O cineasta parece ter segurado a tensão por tanto tempo que depois, cansado, resolve ser muito gentil com seu interlocutor e ajudá-lo de vez. O didatismo intermitente retorna na conclusão, quando a letra de uma canção reforça tudo o que já víamos até então: “Você não vai voltar / Para mim, você ainda está aqui / Você está em todos os lugares, e em lugar nenhum”. Quando a narrativa esfumaçada decide se fazer clara, ela se torna evidente até demais. Os espectadores confusos durante pelo menos metade da aventura receberão todas as explanações necessárias caso sejam pacientes.

Arcadia se encerra em perspectiva otimista, acreditando na capacidade dos protagonistas em concluírem o luto. O roteiro inteiro constitui uma preparação para este instante de resolução do conflito inicial, cumprindo seus objetivos com a amarração das pontas soltas — no interior de uma loja de sapatos, é claro. O projeto possui a aparência de um filme-devaneio, quando se desperta com resquícios de um sonho tão realista quanto absurdo. Remete ao cinema japonês clássico, capaz de olhar para a morte sem piedade nem senso de espetáculo, revestindo-a de poesia por sua simples inevitabilidade. 

Arcadia (2024)
7
Nota 7/10

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