Até que a Música Pare (2023)

A senhora e a tartaruga

título original (ano)
Até que a Música Pare (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
97 minutos
direção
Cristiane Oliveira
elenco
Cibele Tedesco, Hugo Lorensatti, Nicolas Vaporidis, Elisa Volpatto, Teti Tedesco, Tamara Zanotto
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Era uma vez uma senhora conservadora e cristã, vivendo no sul do Brasil. Ela levava uma rotina solitária na grande casa da família, sofrendo com a ausência do filho adulto, falecido num acidente de carro. Até o dia em que ouviu falar sobre o budismo, e a possibilidade de reencarnação de seres humanos em animais. Dispensou a ideia a princípio, porém logo começou a interpretar a pequena tartaruga comprada pelo marido enquanto novo corpo do filho querido. Afeiçoou-se ao bicho, e encontrou nele um centro de interesse capaz de romper com a existência monótona.

Até que a Música Pare constitui uma fábula. No centro da trama, encontra-se uma metáfora para a superação do luto, além de uma possibilidade fantástica de reinserir socialmente uma mulher idosa. A diretora Cristiane Oliveira continua elaborando, filme após filme, uma cartografia afetiva das mulheres do sul do Brasil. Manifesta profunda empatia e carinho por cada uma delas, em sua inadequação e vontade de pertencer, por meio de um recorte intergeracional.

Aqui, investe num projeto ainda mais singelo, com menos personagens, deslocamentos e conflitos do que Mulher do Pai (2016) e A Primeira Morte de Joana (2021). Ao mesmo tempo, trata-se da iniciativa mais arriscada em termos narrativos, pela dificuldade de inserir organicamente as discussões metafísicas e o realismo fantástico através do filho-transformado-em-tartaruga. As histórias de passagem à fase adulta, presentes nos dois longas-metragens anteriores, brincavam com estruturas cristalizadas do gênero. Já a tomada de consciência filosófico-existencial na terceira idade ocupa um espaço próprio.

O afeto transborda em cada cena. A cineasta sempre demonstrou aversão pela mise en scène brusca, as violências explícitas, as dinâmicas caóticas. Prefere criar interações dos familiares à mesa, comendo ou cozinhando, enquanto conversam tranquilamente. Um personagem fala, o outro espera, e então responde quando chega a sua vez. Ocupam posições simétricas do quadro, e se movem muito pouco. Não possuem planos urgentes, tarefas difíceis, problemas crônicos de dinheiro, saúde, etc. Oliveira privilegia os tempos mortos, as rotinas onde nada aparenta acontecer. 

O tom contemplativo poderia contribuir à discussão sobre religiões. Ora, este tema surge de modo abrupto, sendo conduzido em chave pedagógica. O rapaz italiano explica às senhoras sulistas como funciona o budismo, a crença na reencarnação, a relação particular com Deus. Elas perguntam de novo e de novo, ganhando uma resposta gentil a cada questão com aparência de crítica ou deboche. O moço tem como única função esclarecer os princípios desta doutrina, aproximando-se da página Wikipédia lida pouco tempo depois, em voz alta, para informar o espectador.

A narrativa segue este aspecto mui-to cla-ro, onde as pessoas dizem o que pensam, verbalizam suas dúvidas e obtêm respostas instantâneas. Os sentidos se constroem numa lógica próxima do cinema infantil, abraçando causas e efeitos imediatos, ou indagações seguidas de respostas. Nenhum conflito será lançado sem a possibilidade de resolução na cena seguinte. Marido e mulher brigam, e ela se recusa a seguir viagem com ele. Poucos minutos depois, volta ao carro. Afirma que não pretende se misturar aos imbróglios financeiros dele. Adiante, topa ajudá-lo.

A tendência a diminuir complexidades em prol de uma narrativa linear, cronológica e clássico-narrativa transforma Até que a Música Pare numa obra ingênua — no sentido de ausência de ousadia ou malícia na condução. Com frequência, estes adultos se assemelham a meninos mimados, emocionalmente imaturos, que choram com as mãos no rosto por qualquer entrave, apenas para enxugarem as lágrimas e se esquecerem dos dilemas minutos depois. Mesmo a menção ao bolsonarismo e o conservadorismo se reduz ao limite do caricatural, dependendo das notícias convenientes do noticiário na televisão.

Já os planos fixos, sempre na altura dos olhos de uma pessoa de pé (em leve plongée, portanto) denotam um caráter artificial, excessivamente posado das imagens. Opera-se na lógica de “uma cena, um conflito”, sem espaço para poesias, provocações ou atritos de montagem. Coadjuvantes aparecem para desempenhar uma função clara (explicar à avó como se usa o celular, ajudar a senhora abandonada a voltar para casa) e depois somem. 

Estas figuras andam da direta à esquerda, carregam santas aqui e vendem produtos acolá, porém ainda soam inconsequentes, indiferentes, desocupados. Não possuem objetivos reais, de modo que estas atividades (profissionais) parecem desculpas para a narrativa caminhar, ao invés de um conflito propriamente dito. Nunca se discute o valor das vendas; a maquiagem contábil se prova inconsequente; a frase na lápide será esquecida. O filho parte de casa sem deixar traços, assim como a neta. As decisões dramáticas e narrativas se ressentem de peso e consequência. 

Portanto, as raras tentativas de elevar a temperatura esbarram numa construção acessória, além das atuações engessadas. Por mais que se valorize a utilização do talian, língua praticada de fato nas regiões do Sul, os diálogos ficam quadrados na boca dos atores, que os pronunciam de modo ex-ces-si-va-men-te pau-sa-do, sem a entonação, ritmo ou fluidez de uma fala cotidiana. Não espere que estes personagens gaguejem, se interrompam, digam algo de maneira irrefletida — é visível a entrega de um texto escrito, decorado, lido. A briga de marido e mulher durante o clímax, em contraluz, se traduz numa fraca construção de direção, o que limita o impacto emocional.

Em especial, a metáfora da tartaruga será utilizada ao limite do esgotamento. Uma dezena de cenas se encerram com um movimento de câmera rumo à bacia azul onde perambula a pequena tartaruga. Sim, já compreendemos a presença simbólica do falecido filho no recinto. Sim, entendemos a importância do animal no processo de luto da heroína. Entretanto, a repetição deste recurso, e mesmo a associação direta com a alma do filho beiram a inverossimilhança. Chiara se converte numa mulher pueril, crédula e influenciável, algo que talvez não corresponda à intenção inicial dos criadores.

Ao final, resta uma forma de cinema comportado e inofensivo, de luzes corriqueiras, personagens simples, conflitos mínimos. Seria possível retratar a monotonia de modo provocador, fantasioso, próximo do cômico, do suspense. O embate de religiões, num Brasil conservador, também se prestaria a fricções mais intensas do que a associação quase imediata entre 1. Existência do budismo, 2. Descoberta da reencarnação, 3. Retorno do falecido. Quanto menos contradições e complexidades estas figuras nos oferecem, menos aparentam dignos de crença, de identificação e projeção por parte do espectador. 

Até que a Música Pare (2023)
5
Nota 5/10

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