Atiraram no Pianista (2023)

A violência animada

título original (ano)
Dispararon al Pianista (2023)
país
Espanha, França, Holanda, Portugal, Peru
linguagem
Animação, Documentário
duração
103 minutos
direção
Fernando Trueba, Javier Mariscal
elenco
Jeff Goldblum, Tony Ramos, Roberta Wallach
com as vozes de
hico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Mutinho, Toquinho, Edu Lobo, Milton Nascimento, Paulo Moura
visto em
Festival do Rio 2023

Certa noite, Francisco Tenório Júnior sumiu. Foi buscar remédio para a namorada, ou talvez tenha saído para comprar um sanduíche na noite em Buenos Aires. Jamais retornou. Devido à ditadura militar argentina, que se posicionava contra artistas, todos logo deduziram o pior. Muitos anos depois, escutou-se o relato de um homem que teria presenciado o assassinato do brasileiro pelos militares com um tiro na testa. Mas o corpo nunca apareceu, e a viúva jamais pôde receber qualquer forma de indenização pelo crime. 

Atiraram no Pianista utiliza a história real para resgatar o espírito de uma época. A figura do músico permite revisitar, num único movimento, o ápice da música brasileira, durante os tempos de bossa nova e samba jazz, e o pior das ditaduras brasileira e argentina, quando nossos maiores criadores se exilaram, foram calados ou mortos pelo sistema. Como a arte responde à política, e como esta, por sua vez, revida e justifica as novas criações artísticas? De que maneira, hoje, os principais nomes daqueles tempos refletem sobre os regimes opressores?

Os diretores Fernando Trueba e Javier Mariscal, estrangeiros ao contexto sociopolítico brasileiro, preferem eleger a figura de um estrangeiro para conduzir a trama. Através do jornalista norte-americano Jeff (voz de Jeff Goldblum), facilitam a vida do espectador distante a estes fatos. O olhar externo, pertencente a um sujeito de outra cultura e língua, justifica o recurso a inúmeras personalidades brasileiras e argentinas, que basicamente explicam o ocorrido ao entrevistador. 

Há uma espécie de provocação, ou pelo menos um atrito curioso, na representação da violência sangrenta da ditadura pelos traços afáveis da animação em 2D.

Na base, existe um documentário muito tradicional, montado a partir da sucessão de entrevistas. Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Mutinho, Toquinho, Edu Lobo, Milton Nascimento e tantos outros conversam com este personagem fictício a respeito da importância do artista executado. Constroem, pela ausência, a figura de um sujeito dócil, amante da natureza e de pouca inclinação política, mas também instável, propenso a abandonar trabalhos e deixar os palcos quando não sentia vontade de se apresentar.

O conteúdo se transforma, é claro, com a chegada da animação. Os cenários, personagens e mesmo as fontes de entrevistas são filtrados pelo universo lúdico graças a um traço simples, cartunesco, repleto de cores que ousam romper com qualquer naturalismo. A este propósito, as performances musicais representam os melhores momentos do filme, quando os personagens se tornam verdes, azuis, vermelhos, bicolores. A arte transforma a percepção do real.

Há uma espécie de provocação, ou pelo menos um atrito curioso, na representação da violência sangrenta da ditadura pelos traços afáveis da animação em 2D. A linguagem do desenho provoca estranhamento em referência ao imaginário coletivo de militares com os fuzis em punho, desfilando pelas ruas da cidade em tanques, ou abordando agressivamente pequenos grupos na rua. Do mesmo modo, os rostos bastante conhecidos de Chico Buarque, Caetano Veloso e demais ícones da MPB se diferenciam pela animação.

Atiraram no Pianista permite observar Tenório Jr., “símbolo da morte de uma era de ouro da música” e “vítima das ditaduras de dois países”, segundo os diálogos, por um prisma de imagens, sons, texturas e ritmos muito diferentes daqueles com que o tema é normalmente abordado. Os diretores preservam a linearidade do filme histórico — a narrativa se mantém descritiva e cronológica —, enquanto evitam utilizar o desenho enquanto ferramenta de abstração ou ruptura completa com o naturalismo. Encontram um precioso meio-termo entre os registros e maneiras de enxergar o mundo.

Além disso, contam com um belo trabalho de vozes no que diz respeito à ficção. Jeff Goldblum, no personagem do jornalista, transmite suas habituais hesitações ao sujeito convertido em espectador atento, enquanto Tony Ramos faz o melhor amigo brasileiro, muito prático e repleto de contatos, a quem se permite o sotaque forte ao falar em inglês. O rosto da ex-esposa de Tenório, assim como aquele da amante, são revelados e ocultados, em simultâneo, graças ao recurso da animação. 

Isso não significa que o projeto esteja isento de problemas. Um deles reside no olhar turístico do Brasil, posto que o discurso da obra se destina majoritariamente aos não-brasileiros. Cada chegada a Rio de Janeiro ou São Paulo é coroada pelos cartões postais típicos e redutores, despertando a estranha sensação de que cariocas vivem na praia de Copacabana, em frente tanto ao Cristo quanto ao Pão de Açúcar, observando o mar. Posto que estamos falando de investigação, seria interessante desfazer o estereótipo das nossas cidades.

Já o salto veloz entre mais de vinte entrevistados também produz encontros rápidos e insuficientes. A alardeada reunião com João Gilberto parece que nunca ocorre de fato, enquanto Caetano e Chico se resumem a pouco mais de uma frase cada um. São incluídos pela montagem graças à importância simbólica de sua presença, ao invés do curto conteúdo que os diretores decidem guardar de seus testemunhos. É certo que ambos teriam muito mais a contribuir a respeito do tema, para além da aparição de luxo.

Pelo menos, a obra explica os fundamentos da Operação Condor e revisita as ditaduras na América Latina enquanto resgata, ainda que timidamente, o papel dos Estados Unidos no fomento a estes golpes de estado cruéis. Oferece, assim, um belo trabalho de pesquisa histórica acerca dos países envolvidos, apoiando-se em datas e dados, tanto do universo musical quanto político. Conforme o roteiro abandona o mero elogio artístico da primeira metade para revelar o “outro lado da moeda” na segunda metade (a ditadura militar), aprofunda-se de maneira inesperada na formação dos países latino-americanos. 

Na conclusão, encerra-se de maneira rápida, protocolar, sem rodeios nem lamentações. Trueba e Mariscal encontram um posicionamento intermediário entre o mero ensinamento didático (“Você sabia que, nos anos 1960 e 1970, Tenório Jr…?”) e a denúncia política, construindo um filme de pesquisa, singelo em suas proporções, porém menos inocente do que poderia parecer devido à animação e ao olhar externo. O resultado se mostra agradável aos olhos e ouvidos, porém amargo enquanto crônica política.

Atiraram no Pianista (2023)
7
Nota 7/10

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