Camping do Lago (2023)

A fantasia indiferente

título original (ano)
Camping du Lac (2023)
país
Bélgica, França
linguagem
Drama, Fantasia, Documentário
duração
70 minutos
direção
Éléonore Saintagnan
elenco
Éléonore Saintagnan, Anna Turluc’h, Jean-Benoît Ugeux, Rosemary Standley, Wayne Standley
visto em
Festival de Locarno 2023

Em Camping du Lac, a cineasta Éléonore Saintagnan ocupa a função de diretora e roteirista, além de narradora e atriz principal. Ela se dirige ao espectador, do começo ao fim, para explicar suas intenções, decisões, e mencionar os imprevistos encontrados no caminho. “Aconteceu uma coisa bem estranha que eu preciso te contar”, afirma na abertura. Assim, a obra adquire um caráter de intimidade, tal qual uma conversa despojada entre amigos por telefone. A diretora teve um fim de semana curioso, e decidiu transformá-lo num filme. Simples assim.

O longa-metragem se constrói entre o documental e a ficção “pura”, no caso, a fantasia. Por um lado, viaja-se a um acampamento real, na Bretanha, composto por moradores solitários, isolados, ocultando algumas feridas no passado. É evidente que a câmera se aproxima deles com interesse sociológico, tentando entender o que leva tantos adultos a viverem em condições modestas à beira do pequeno lago por onde poucas pessoas passam. Que senso de comunidade se forma entre os excluídos? O texto aponta para questionamentos desta ordem, prometendo um documentário de observação crítica, talvez próximo do que Frederick Wiseman vem desenvolvendo em seus filmes.

Por outro lado, interessa-se ao mito de um peixe mágico que habitaria aquelas águas. Fala-se num animal gigantesco, mítico, dotado de poderes particulares. Uma mulher mergulha diariamente no lago, dançando com o suposto animal. Ao término de seu ritual particular, emite estridentes sons de orgasmos, escutados por todos os vizinhos. Pescadores prometem que já viram o bicho. A autora procura, portanto, não apenas compreender a origem do mito, como estabelecer alguma prova de sua existência.

Camping du Lac transmite uma atmosfera curiosamente blasée, indiferente. Ele se constrói pelos movimentos contraditórios de demonstrar profundo interesse no banal (a ponto de dedicar um longa-metragem a este espaço), mas também certo desdém pelos personagens filmados.

O melhor indício se encontra na lenda de Saint Corentin, famosa nesta região francesa. O homem se alimentaria de peixes vivos, retirando uma minúscula parte de sua carne, que se regeneraria no dia seguinte. Isso garantiria a sobrevivência do homem desapegado de bens materiais, e respeitoso da natureza. Um dia, no entanto, a ganância de visitantes diante do milagre dos peixes provocaria a fuga do animal fantástico. Saintagnan decide recriar, na chave da ficção lúdica (com aparência de faz de conta), a história do santo bretão, em paralelo à vida pacata dos residentes do acampamento.

Em termos de estrutura, o projeto decorre das fricções entre documentário e ficção. A diretora recria cenas, sugere outras, condiciona algumas atitudes. Às vezes, filma o acaso, mas, em geral, condiciona-o às vontades da câmera. Ela ficcionaliza o dia-a-dia, brinca de transformar os residentes em atores, ao passo que converte a si própria em personagem. Mesmo assim, jamais produz qualquer forma de catarse ou conflito dignos deste nome. A estrutura segue uma linearidade imperturbável, com os dias se sucedendo sem que o espectador perceba algum objetivo particular, ou um encaminhamento específico destas ações. Observa-se pelo prazer de observar.

Em outras palavras, Camping du Lac transmite uma atmosfera curiosamente blasée, indiferente. Ele se constrói pelos movimentos contraditórios de demonstrar profundo interesse no banal (a ponto de dedicar um longa-metragem a este espaço), mas também certo desdém pelos personagens filmados. A diretora nunca conversa a fundo com nenhum deles, nem tenta entender o funcionamento diário do local. A câmera evita adentrar espaços, filmar interações espontâneas, abrir-se aos eventos que a rotina possa lhe proporcionar. O camping lhe interessa enquanto ideia, não como realidade.

O principal indício de tamanho desapego ao próprio objeto de estudo se encontra na onipresença da narração em off. Saintagnan comenta cada passo seu e dos outros. Ela o faz porque, sem tamanha explicação, a trama não avançaria. As imagens, um tanto simples e diretas, não são suficientes para traçar um desenvolvimento narrativo, e a montagem não conseguem uni-las de modo que transmitam, por si próprias, o cruzamento entre fantasia e realidade. Precisa, portanto, justificar suas intenções cena a cena, tal qual o diretor que, diante de uma obra um tanto modesta, explica aos interlocutores durante uma pré-estreia: “Aqui, na verdade, eu queria ter feito de outra maneira, mas não tive a verba…”. Sem a opressora voz em off, não haveria filme. A cineasta possui material insuficiente para um longa-metragem, corrigindo-se, portanto, através do remendo da voz.

Quando a fantasia enfim se materializa, na sequência final, a obra revela o belo potencial dramático e estético que teria, caso acreditasse na força de suas imagens. O desfecho possui uma força ímpar, e condensa a intenção buscada desde o princípio, de retratar um acontecimento sobrenatural em chave avessa ao espetáculo. A cena impressiona pelos enquadramentos abertos, pelo uso discreto, porém competente de efeitos visuais e práticos. A bela magia nasce ali, na hora de concluir.

Infelizmente, este lampejo surge tarde demais. A maior parte destes 70 minutos se transmite na instrumentalização do outro, ou seja, no interesse em filmá-lo como objeto, sem compreendê-lo de fato. Os moradores do acampamento nunca se tornam protagonistas. Eles não adquirem voz, nome, nem ganham a possibilidade de se expressarem livremente. O foco de Éléonore Saintagnan continua sendo a si mesma, e sua imaginação a partir da vida alheia — vida esta que, caso se desse ao trabalho de explorar e conhecer, poderia revelar algo diferente de suas expectativas.

Camping do Lago (2023)
4
Nota 4/10

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