Eastern Front (2023)

Ainda estamos vivos

título original (ano)
Shidniy Front (2023)
País
Letônia, República Tcheca, Ucrânia, EUA
gênero
Documentário, Guerra
duração
98 minutos
direção
Vitaly Mansky, Yevhen Titarenko
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

“Nosso filme começa em 24 de fevereiro de 2022, quando o mundo finalmente começou a prestar atenção nos ataques da Rússia à independência ucraniana”. O documentário se abre com explicações de tempo, espaço e causa. Realizado em tempo recorde, “seis meses depois do início da guerra da Ucrânia”, conforme avisa o narrador, o projeto assume um tom de urgência para retratar o desastre ocorrido na região desde que Vladimir Putin iniciou os bombardeios à nação vizinha.

Os diretores Vitaly Mansky e Yevhen Titarenko fogem à recapitulação histórica. Partem do pressuposto que o confronto atual não foi esquecido a ponto de justificar uma rememoração passo a passo, com datas e dados da batalha. Ao mesmo tempo, evitam as vertentes sociológica e histórica, capazes de explicar de que maneira chegamos até aqui. Eles preferem se concentrar num tempo terrivelmente presente, a partir da constatação simples de que a guerra existe, agora, neste instante. Não é o caso de investigar as narrativas de ambos os lados, apenas o dia a dia de quem participa dos frontes.

O tempo presente se torna um fator determinante no filme. Ao invés de comentar a guerra dos outros, a partir de um local confortável e distante, a obra se desloca ao terreno de combate junto aos Hospitallers. Estes cidadãos ucranianos prestam ajuda voluntária aos soldados feridos, transportando-os em veículos comuns até o hospital mais próximo, e prestando socorro imediato no local quando necessário.

A equipe de cinema visita estes terrenos com o acréscimo de câmeras instaladas nos uniformes dos socorristas. Assim, passam ao lado de bombardeios, percebem fragmentos de corpos humanos dispersos sobre a estrada. Eles notam um pasto com centenas de bois morrendo, carros destruídos, casas em chamas. O caráter absurdo inerente às guerras é acentuado pela descoberta de uma máquina de lavar intacta, em meio ao chão de lama, além de um espelho e de um livro: Heaven Can Wait, de Leonore Fleischer. O protagonista observa as páginas e ri: “O paraíso vai esperar mesmo”.

O posicionamento ético diante das mortes constitui um fator determinante nesta obra. […] Felizmente, os criadores fogem à política do espetáculo.

O posicionamento ético diante das mortes constitui um fator determinante nesta obra. Teria sido fácil se aproximar do sangue e dos gritos de ajuda para apelar à sensibilização do público por meio das emoções. Felizmente, os criadores fogem à política do espetáculo: as partes humanas nunca serão vistas em cena, apenas mencionadas pelos diálogos. O mais perto que a direção chega de uma exploração do sofrimento reside nos planos próximos de um homem reanimado no interior da ambulância. Espera-se que Mansky e Titarenko tenham obtido a autorização dos próximos para revelar a identidade e o corpo da vítima.

Para além de uma obra urgente, esta seria uma obra ao vivo, ou próxima disso. Cada vez que escolhem uma ação para desenvolver na trama, os autores se dedicam a ela minuto após minuto, com pouquíssimos saltos temporais via montagem. A corrida da ambulância pelas avenidas fechadas ocorre quase em tempo real, e algo semelhante se passa com as tentativas de identificar o ferido mais grave, para ser transportado ao carro de resgate. Os autores desejam mostrar a duração destes percursos, sem se contentarem com o caráter fatual e final (do tipo “conseguiu”, ou “não conseguiu”). Assim, valoriza o esforço destas pessoas, em detrimento do resultado.

Passada a introdução de cenários e conflitos, o documentário encontra sua estrutura através da alternância entre as cenas de conflito e outras, de descanso, quando os membros da Hospitallers almoçam com familiares no campo, ou mergulham no lago e lembram o que lhes ocorreu. A tensão se equilibra com a calmaria; os terrenos lamacentos cedem espaço aos campos verdes e cachorros correndo pela fazenda; e o desespero permite uma quantidade inesperada de humor. Os personagens riem de desconforto, na forma de um expurgo. 

Durante a refeição com esposas e sogras, começam a pensar no pós-confronto, quando a guerra terá sido superada. É estranho refletir sobre o futuro quando a violência ainda demonstra poucos sinais de arrego, no entanto, se lançam numa projeção tragicômica a respeito da baixa de cidadãos ucranianos, mortos em combate. A solução, segundo as mulheres, seriam os adultos ucranianos fazerem suas doações em bancos de esperma, para garantirem a quantidade de bebês locais nas próximas gerações. Eles ficam desconfortáveis, e após algumas risadas, permanecem em silêncio. 

Instantes como este permitem que Eastern Front represente a morte, ao invés de somente lamentá-la ou temê-la. A alegre preparação do almoço ao som de tiros na vizinhança; a tentativa de deduzir os autores das bombas lançadas logo ao lado (“Eu acho que são das nossas”, cogita o personagem) e a cena do cachorro alvejado a tiros revelam a maneira como o confronto se infiltra no dia a dia, nas famílias, na cultura, nos pensamentos. Mesmo no almoço, é difícil falar sobre outra coisa. “Pena que nem todos sobreviveram, mas ainda bem que estamos vivos”, afirmam os jovens, duas vezes. Até as alegrias são tristes.

O filme encontra espaço, em paralelo, para debater a disputa de narrativas e a manipulação da opinião pública através dos canais oficiais. A história da avó pró-Rússia, que duvida de conflitos em Donbas, porque viu algo diferente na televisão, desperta a indignação do neto, que repete ter testemunhado a disputa com os próprios olhos. O roteiro discute as notícias falsas, e a tendência a acreditar apenas no que se deseja, contra os fatos e evidências. 

Em tempos extremos, a realidade se torna maleável às vontades individuais, numa espécie de delírio, ou pacto coletivo de crença. Para um Brasil ainda dominado pelo pensamento bolsonarista, e repleto de discursos igualmente delirantes, a reflexão soa próxima até demais. Ao se aproximar dos detalhes, das famílias e do cotidiano do confronto, Mansky e Titarenko revelam menos as especificidades deste episódio específico do que um funcionamento muito mais amplo de uma contemporaneidade doente, e uma noção falida de sociedade no século XXI.

Eastern Front (2023)
7
Nota 7/10

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