Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022)

O prazer de ser trapaceado

título original (ano)
Glass Onion: A Knives Out Mystery
país
EUA
Gênero
Comédia, Suspense
duração
139 minutos
direção
Rian Johnson
elenco
Daniel Craig, Edward Norton, Janelle Monáe, Kathryn Hahn, Leslie Odom Jr., Jessica Henwick, Madelyn Cline, Kate Hudson, Dave Bautista
visto em
Festival de Toronto 2022

Esta sequência chega aos cinemas em circunstâncias muito diferentes de seu antecessor. Em 2019, a estreia de Entre Facas e Segredos provocou surpresa num circuito saturado de refilmagens, filmes derivados e adaptações. Embora o suspense de investigação em estilo whodunnit (quem matou?) esteja longe de representar uma novidade, ele pelo menos trouxe novos personagens, numa trama repleta de reviravoltas, marcada por um inesperado humor a partir do assassinato do patriarca. Daniel Craig teve a oportunidade de desconstruir o imaginário grave de James Bond, enquanto Chris Evans ofereceu um registro radicalmente diferente do Capitão América. 

Agora, o segundo filme possui outras expectativas. Em primeiro lugar, o efeito surpresa do original se passou. Já conhecemos as habilidades de Benoît Blanc (Craig), uma releitura contemporânea e caipira de Hercule Poirot, assim como o estilo de autoparódia proposto pelo diretor Rian Johnson. Desta vez, o espectador sabe que qualquer pista do crime será provavelmente provada falsa, ou então ressignificada, até um jogo de revelações instaurar, no clímax, o verdadeiro responsável pela morte. Estamos cientes e vacinados — termo pertinente a uma trama que menciona diretamente a Covid-19 e o isolamento social.

Além disso, Glass Onion: Um Mistério Knives Out pertence à Netflix, o que implica em transformações diretas na trama. Como de costume em comédias preparadas pela empresa, o humor se torna mais intrusivo, frequente e juvenil; repleto de acenos à cultura pop e instantes passíveis de viralizar nas redes. Na segunda aventura, como de costume em franquias recém-firmadas, leva-se o novo grupo de personagens a uma viagem num país distante e exótico (a Grécia, no caso), onde a matança pode ocorrer à beira da piscina, com um belo pôr do sol de pano de fundo. 

O projeto se rende ao filme de férias, ou filme de turismo, onde todos os homens e mulheres precisam ser lindos, mostrando sua boa forma, num contexto de sedução erótica inofensiva (ou seja, de classificação etária PG-13), o que foge ao modelo anterior. Ciente de que precisaria fazer mais e maior, o diretor aposta em algo que soa bastante próximo de uma paródia do projeto original, com todos os desafios de propor a paródia de algo que já era humorístico originalmente. O teor satírico permite a entrada em cena do grandalhão que ainda apanha da mãe (Dave Bautista), da loira burra (Kate Hudson), do milionário excêntrico em modo Jeff Bezos ou Elon Musk (Edward Norton) e de outras figuras que o projeto considera hilárias por si mesmas.

Ciente de que precisaria fazer mais e maior, o diretor aposta em algo que soa bastante próximo de uma paródia do projeto original.

Isso não significa que o resultado seja fraco: ele apenas possui outra natureza, num contexto socioeconômico distinto. Faz sentido pensar nesta comédia enquanto produto, além de filme. Neste caso, os empresários solicitam um novo sabor à mercadoria, capaz de ampliar a atenção e seduzir um público mais amplo do que os consumidores anteriores. Os acenos pop, incluindo diversas participações especiais, tornam o resultado teen, e o aspecto colorido, saturado e de corpos sarados pode atrair pessoas que talvez não se sentissem particularmente seduzidas pelas expressões sombrias de Entre Facas e Segredos.

Desta vez, há mortes dentro da morte, e crimes dentro do crime. Se antes encontrávamos o humor do absurdo, talvez seja mais apropriado falar agora numa farsa. Os convidados à ilha paradisíaca de Miles Bron (Norton) decidem participar de um jogo de mistério, onde o anfitrião simularia a própria morte para que os colegas encontrem pistas dispersas pelo resort. É claro que este jogo sai do controle, e um assassinato real acontece. Curiosamente, as revelações mirabolantes desse tipo de suspense se encontram com uma confortável previsibilidade: sabemos que haverá a morte, que todos terão motivos para cometê-la e que, na hora propícia, a revelação do responsável será feita ao público. Apenas ignoramos o caminho que nos conduz até a recompensa prometida.

O roteiro leva tempo considerável construindo a pequena história de cada personagem, e aproveitando o potencial autoirônico da ilha até finalmente instalar o aspecto policial. Talvez a demora frustre espectadores sedentos por uma intricada rede de adivinhações, visto que, durante a primeira metade, a comédia impera. Além disso, algumas figuras são muito mais desenvolvidas que outras: Birdie (Hudson), a modelo pouco inteligente, se revela muito mais importante do que a senadora Claire (Kathryn Hahn) e o cientista Lionel (Leslie Odom Jr.), por exemplo. Esta assimetria surte efeito mais tarde, quando se torna claro quais peças o diretor realmente planeja mover sobre o tabuleiro.

Os atores se divertem com as paródias de si próprios: Dave Bautista ridiculariza o sujeito fortão que domina as redes sociais; Madelyn Cline efetua uma paródia da pequena influenciadora, e assim por diante. A melhor personagem, com mais capacidade de transformação ao longo do processo, é Cassandra (Janelle Monáe), cujo percurso realmente surpreende. Talvez ela seja a única capaz de se desprender do estereótipo único (ou, pelo menos, transitar entre estereótipos diferentes). Rian Johnson gosta de solicitar ao elenco que ridicularize a si próprio, e estes atores, com fácil trânsito pela comédia de situações, aproveitam a possibilidade.

Felizmente, o cineasta possui domínio suficiente destas produções gigantescas para depositar alguma dose de criatividade no conjunto. Ele introduz um sem-número de gags bem-sucedidas (o amigo maconheiro, que não participa do jogo), e consegue fazer com que a maioria das cenas seja revista por outro ângulo ou duração estendida, de modo que o espectador descubra alguma informação importante, escondida na primeira vez. Na fundo, nós somos os verdadeiros convidados desta festa, sabendo que seremos trapaceados, e que a solução corresponderá a uma versão diferente daquelas sugeridas. Mesmo assim, participamos.

Além disso, Glass Onion possui um grão de loucura e surrealismo que beneficia o resultado. Por mais que diversas guinadas soem improváveis (e mesmo inverossímeis), elas ocorrem numa velocidade tão grande, e dentro de uma atmosfera de delírio, que permite tais licenças poéticas. A festa caseira de Birdie (Hudson), a configuração exageradíssima da ilha e sobretudo a presença da Mona Lisa original soam como alerta constante de que nos encontramos diante de uma miragem, uma viagem alucinatória. As imagens da saia multicolorida de Hudson girando, ou de vasos de vidro quebrando, reposicionam esta produção como um terreno de jogo, um faz-de-conta. Miles Bron consegue efetuar sua festa de mistério, afinal.

Por fim, o projeto garante a diversão num ritmo alucinatório, insistente, e muito mais funcional do que outras propostas de comédia de ação originais da Netflix (vide o fraco Alerta Vermelho). Talvez o resultado tenha se tornado familiar, nos melhores e piores sentidos do termo. Pode-se reclamar que seja pouco memorável, entretanto, não parece ter sido construído com a intenção de deixar marcas duradouras. Johnson oferece uma longa piada, extravagante e caríssima, mostrando o quanto as grandes empresas estão dispostas a investir para um entretenimento funcional, assumidamente ridículo, e acessível à parcela mais ampla possível de espectadores.

Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022)
7
Nota 7/10

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