Good Boy (2022)

Domadores e domados

título original (ano)
Good Boy (2022)
país
Noruega
gênero
Terror
duração
76 minutos
direção
Viljar Bøe
elenco
Gard Løkke, Katrine Lovise Øpstad Fredriksen, Amalie Willoch Njaastad
visto em
Cinemas

Por um lado, existe a vida luxuosa e entediante de Christian (Gard Løkke). Este milionário não trabalha nem estuda. Passa seus dias numa mansão isolada no campo, onde aparentemente inexistem amigos, funcionários ou vizinhos. A única companhia deste herdeiro é seu cachorro, ou melhor, um amigo que passa os dias fantasiado de cachorro, e exige ser tratado desta maneira. Paira uma atmosfera de normalidade no ar: “Quem somos nós para julgar, não é mesmo?”, afirma uma personagem.

Por outro lado, existe a vida do cachorro. Se Christian tem sua rotina esmiuçada com uma transparência ímpar — sabemos tudo o que ele faz, o tempo inteiro — desconhecemos o sujeito por trás da fantasia canina. O que teria levado Frank a adotar este comportamento? Como surgiu a relação de dominação e interdependência entre os dois homens? Um dos protagonistas é revelado ao espectador por completo, porém o outro permanece no domínio da sugestão.

Good Boy constrói sua tensão por meio desta assimetria flagrante de informações. Ficamos presos entre a rotina banal de um, e o aspecto grotesco das atividades do outro. Se uma metade representa o drama e o romance (na cena inicial, Christian encontra uma garota via aplicativo de paquera no celular), o outro aponta ao suspense ou terror no horizonte. Do que seria capaz o indivíduo de força humana, porém convertido num animal irracional? 

A animalização da diferença e a bestialidade do outro aproximam o longa-metragem de um discurso conservador. Esta lógica perversa se materializa no diálogo comparando o cachorro a um homem gay.

O diretor Viljar Bøe se diverte com as sugestões. A primeira metade desta narrativa se mostra bastante eficaz, tanto na apresentação de Frank, desde a cena inicial, quanto na inserção do homem-cão na rotina de seu dono. Descobrimos que o animal retira a roupa para o banho, que dorme aos pés do proprietário da casa. Eles se admiram, se vigiam, se cuidam. Há um componente claro de homoerotismo entre ambos, além de uma relação sadomasoquista, sustentada em segundo plano durante o máximo tempo possível.

Em contrapartida, o ponto de vista não pertence a nenhum dos dois, e sim a Sigrid (Katrine Lovise Øpstad Fredriksen), a estudante que se envolve com o milionário. Convém ao roteiro que a perspectiva provenha de alguém que fora, em desconhecimento e ceticismo quanto à relação dos rapazes. Assim, ela representa a apreensão, dúvida, curiosidade e medo do espectador. É mais fácil nos identificar com a forasteira do que com as duas partes deste laço de exploração e desumanização. 

Parte da mulher se enoja com a posição animalesca em que Frank é colocado. Parte dela tolera esta configuração, face à estrutura de consentimento entre adultos. Um dos aspectos mais complexos, e também mais problemáticos do terror norueguês, decorre da ridicularização da diferença e da identidade não-conforme. Coloca-se enquanto perigosa, ridícula e falsa a disposição do sujeito-cachorro, numa metáfora pouco escondida de identidades desviantes da norma — a transexualidade, em particular. 

A animalização da diferença e a bestialidade do outro aproximam o longa-metragem de um discurso conservador, do tipo que traça pontes entre transexualidade e zoofilia ou bestialidade. “Se um homem pode se sentir mulher, por que não poderia se sentir um bicho? Se pode ter atração pelo mesmo sexo, o que o impede de fazer sexo com animais?”. Esta pretensa lógica perversa, comum ao pensamento religioso, se materializa no diálogo em que Sigrid e Christian comparam o cachorro a um homem gay. Nos diálogos, dizem que se a sociedade aceitou pessoas homossexuais, também precisaria aceitar aquelas que se “sentem cachorros”. A homossexualidade ou transexualidade transformada em “porta de entrada para perversões mais pesadas” obviamente traz um componente de ojeriza em relação às diferenças.

Good Boy guarda uma boa e importante reviravolta, aproximadamente no meio da narrativa. Ela atenua parte destas preocupações, ainda que desperte outros problemas de lógica e verossimilhança. Em outras palavras, a guinada torna os personagens mais humanizados, porém incoerentes em igual medida. O roteiro já acumulava uma série de lacunas: como Christian pode ser famosíssimo, e reconhecido em todas as mídias, mas nunca ser procurado por ninguém? Para um sujeito dependente financeiramente da família, como jamais mantém contato com o mundo externo? De que maneira se concebe uma celebridade anônima?

Quando o terror finalmente se instala (apenas no terço final, após um longo suspense psicológico), o longa-metragem apresenta suas soluções visuais e narrativas mais fracas. As tentativas frustradas de fuga soam patéticas (teria sido facílimo escapar antes); a personagem feminina se converte na mocinha incapaz e pouco inteligente diante do perigo; e a possível inversão de poderes resulta num clímax morno, para dizer o mínimo. 

Viljar Bøe adora preparar o terreno ao embate evidente, no entanto, chegando ao campo de batalha, não sabe como se comportar ali. A premissa do homem-cachorro estava repleta de possibilidades e limites a testar: os vizinhos sabem da existência de Frank? Ele já foi confrontado a cachorros reais? Como manifesta sua libido, como se porta em situações de isolamento, de fome? Deixa de ser cão quando ninguém o observa? Existem outros homens-cães pela região? E mulheres-cadelas? O roteiro evita explorar as fronteiras óbvias da fantasia criada por seus personagens.

Além disso, a materialização da violência transparece a inventividade visual e narrativa restrita dos criadores. Por mais que Katrine Lovise Øpstad Fredriksen se esforce em significar o desconforto dentro da casa tão acolhedora quanto opressora, o próprio personagem de Frank jamais se desenvolve, o que reduz sua potência e sua função de detonador de conflitos. O maniqueísmo se instala no final, eliminando definitivamente as complexidades e transformando o jogo inicial de psicologias misteriosas numa batalha de loucos contra sãos, agressores contra agredidos. 

Ao final, Good Boy interessa muito mais pela premissa pouco habitual, e pela perspectiva de uma ferocidade selvagem, do que pela concretização do conceito. Ao menos, festeja-se a chegada ao circuito comercial brasileiro de uma produção independente, autoral, sem prêmios grandiosos nem atores conhecidos. Os distribuidores assumiram alguns riscos com esta aposta, algo benéfico num calendário de estreias repleto de obras formatadas. Como se pode esperar, algumas apostas terão mais sucesso do que outras.

Good Boy (2022)
5
Nota 5/10

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